sábado, 7 de janeiro de 2017

"Talvez todo o ser humano pensante - dizia para consigo, à laia de desculpa - tenha dentro de si essa ideia de ordem, tal como certos adultos usam por baixo da roupa a imagem do santinho que a mãe lhes pendurou ao pescoço em criança. E essa imagem de ordem, que ninguém ousa levar a sério, mas também não rejeita, não pode ser muito diferente do seguinte: numa das faces ostenta a representação vaga de uma nostalgia da lei de uma vida justa, severa e natural, que não permite excepções nem descarta objecções, libertadora como o êxtase e sóbria como a verdade; mas na outra face está representada a convicção de que os nossos próprios olhos nunca verão uma tal lei, os nossos pensamentos nunca a pensarão, que ela não será realizável pela mensagem ou a autoridade individual, mas apenas pelo esforço de todos, se não for mesmo uma pura quimera. Ulrich hesitou um momento. Era sem dúvida um homem crente, mas sem acreditar em nada: nunca a sua grande dedicação à ciência conseguira fazê-lo esquecer que a beleza e a bondade dos homens vêm daquilo em que eles acreditam, e não daquilo que eles sabem. Mas a fé sempre esteve ligada ao saber, apesar de este ser imaginário, desde os primórdios da mágica descoberta da ciência. E essa antiga parte da ciência há muito que apodreceu, arrastando consigo a fé para a mesma decomposição: o que importa fazer hoje é reconstituir essa aliança. Naturalmente, não apenas levando a fé «às alturas da ciência», mas permitindo que ela voe a partir dessas alturas. É preciso praticar de novo a arte da elevação acima do saber. E como isto não é tarefa para um indivíduo sozinho, todos teriam de orientar para aí o espírito, esteja ele onde estiver. E quando Ulrich, nesse momento, pensava num plano para décadas, séculos ou milénios, que a humanidade imporia a si mesma para orientar os seus esforços no sentido de um objectivo que ainda não pode conhecer, não precisava de se interrogar muito para saber que desde sempre tinha imaginado isso, sob os mais diversos nomes, como a autêntica vida experimental. De facto, a palavra fé significava para ele não aquela raquítica vontade de saber, a ignorância crédula que em geral se associa a ela, mas, pelo contrário, um saber de intuição, qualquer coisa que não é nem saber nem ilusão, que não é fé, mas sim aquela «outra coisa» que escapa precisamente a esses conceitos."

Robert Musil, O homem sem qualidades II, p. 201 

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