segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

"Então, o que é que se perdeu?
Algo de imponderável. Um presságio. Uma ilusão. Como quando um íman solta a limalha de ferro e esta se espalha. Como quando se desfaz um novelo de lã. Como quando se soltam os vagões de um comboio. Como quando uma orquestra começa a desafinar. Teria sido difícil apontar algum pormenor que não tivesse também sido possível antes, mas todas as relações se tinham deslocado um pouco. Ideias até aí de fraca aceitação colhiam agora louros. Pessoas por quem antes ninguém daria nada tornavam-se famosas. Os contrastes atenuavam-se, o que estava separado voltava a juntar-se, espíritos independentes faziam concessões ao êxito, o gosto já formado voltava a cair na incerteza. Por toda a parte se tinham esfumado os limites claros, e uma nova capacidade, indescritível, de entrar em alianças fazia emergir novas pessoas e novas ideias. Não eram más, com certeza que não; acontecia apenas que uma pequena percentagem do mau se infiltrava no bom, o erro na verdade, a acomodação na convicção. Parecia mesmo que havia nesta mistura uma percentagem favorita capaz de obter os maiores sucessos; a medida exacta de sucedâneo que fazia o génio parecer mais genial e o talento apresentar-se como grande esperança; qualquer coisa como aquela pequena porção de figo ou de chicória que, segundo alguns, dá ao café o seu verdadeiro gosto a café. E de um dia para o outro todas as posições importantes e privilegiadas da vida do espírito foram ocupadas por gente dessa, e todas as decisões que se tomavam iam nesse sentido. Não se pode dizer que isto ou aquilo foi responsável por tal situação, nem como se chegou aí. É impossível lutar contra pessoas ou ideias, ou contra certos fenómenos. Não há falta de talentos nem de boa vontade, nem sequer de carácter. A questão é que tanto pode faltar tudo como nada. É como se o sangue ou o ar se tivessem transformado: uma doença misteriosa consumiu a ínfima semente de genialidade da época anterior, mas tudo reverbera com o brilho do novo, e por fim já não se sabe se foi o mundo que ficou pior ou simplesmente nós que envelhecemos. É o começo definitivo de uma nova era."

Robert Musil, O homem sem qualidades I, p. 96

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