quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

"Um grande inventor respondeu um dia a quem lhe perguntava como fazia para ter tantas ideias novas: «pensando ininterruptamente nelas». E de facto bem pode dizer-se que as ideias inesperadas nos vêm porque estávamos à espera delas. São, em grande parte, o resultado conseguido de um carácter, de certas inclinações constantes, de uma ambição tenaz, de uma incessante ocupação com elas. Que tédio, uma perseverança assim! Mas, vista de outro ângulo, a solução de um problema intelectual não acontece de modo muito diferente, como um cão que traz um pau na boca e quer passar por uma porta estreita; vira a cabeça para a esquerda e para a direita tantas vezes até que consegue passar com o pau; o mesmo acontece connosco, apenas com a diferença de que não fazemos tantas tentativas ao acaso, mas sabemos já, por experiência, mais ou menos como fazer as coisas. E se uma cabeça inteligente, como é óbvio, revela muito mais habilidade e experiência nas voltas que dá do que uma cabeça estúpida, o momento em que consegue passar não é para ela menos surpreendente; de repente estamos do outro lado, e sentimos claramente um ligeiro desconcerto em nós pelo facto de as ideias terem vindo por sua iniciativa, em vez de esperarem pelo autor. A essa sensação desconcertante chamamos nós hoje em dia intuição, depois de, antes, outros lhe terem chamado inspiração, e julgamos ver nisso algo de suprapessoal; mas trata-se antes de qualquer coisa de impessoal, concretamente da afinidade e da coerência das próprias coisas que se encontram na nossa cabeça.
Quanto melhor a cabeça, tanto menos se dará por ela. É por isso que o pensamento, enquanto estiver em movimento, é um estado deplorável, semelhante a uma cólica de todas as circunvoluções do cérebro; e quando chega ao fim já não tem a forma do processo de pensamento tal como o experienciamos, mas a da coisa já pensada, que, infelizmente, é uma forma impessoal, porque então o pensamento se volta para fora e está preparado para comunicar com o mundo. Quando uma pessoa pensa, torna-se por assim dizer impossível captar o momento entre o pessoal e o impessoal, e é certamente por isso que o pensar é um embaraço tão grande para os escritores que eles preferem evitá-lo."

Robert Musil, O homem sem qualidades I, p.164 

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

"Então, o que é que se perdeu?
Algo de imponderável. Um presságio. Uma ilusão. Como quando um íman solta a limalha de ferro e esta se espalha. Como quando se desfaz um novelo de lã. Como quando se soltam os vagões de um comboio. Como quando uma orquestra começa a desafinar. Teria sido difícil apontar algum pormenor que não tivesse também sido possível antes, mas todas as relações se tinham deslocado um pouco. Ideias até aí de fraca aceitação colhiam agora louros. Pessoas por quem antes ninguém daria nada tornavam-se famosas. Os contrastes atenuavam-se, o que estava separado voltava a juntar-se, espíritos independentes faziam concessões ao êxito, o gosto já formado voltava a cair na incerteza. Por toda a parte se tinham esfumado os limites claros, e uma nova capacidade, indescritível, de entrar em alianças fazia emergir novas pessoas e novas ideias. Não eram más, com certeza que não; acontecia apenas que uma pequena percentagem do mau se infiltrava no bom, o erro na verdade, a acomodação na convicção. Parecia mesmo que havia nesta mistura uma percentagem favorita capaz de obter os maiores sucessos; a medida exacta de sucedâneo que fazia o génio parecer mais genial e o talento apresentar-se como grande esperança; qualquer coisa como aquela pequena porção de figo ou de chicória que, segundo alguns, dá ao café o seu verdadeiro gosto a café. E de um dia para o outro todas as posições importantes e privilegiadas da vida do espírito foram ocupadas por gente dessa, e todas as decisões que se tomavam iam nesse sentido. Não se pode dizer que isto ou aquilo foi responsável por tal situação, nem como se chegou aí. É impossível lutar contra pessoas ou ideias, ou contra certos fenómenos. Não há falta de talentos nem de boa vontade, nem sequer de carácter. A questão é que tanto pode faltar tudo como nada. É como se o sangue ou o ar se tivessem transformado: uma doença misteriosa consumiu a ínfima semente de genialidade da época anterior, mas tudo reverbera com o brilho do novo, e por fim já não se sabe se foi o mundo que ficou pior ou simplesmente nós que envelhecemos. É o começo definitivo de uma nova era."

Robert Musil, O homem sem qualidades I, p. 96

domingo, 18 de dezembro de 2016

"Não podemos esquecer que a atitude de espírito científica, no fundo, crê mais em Deus do que a estética. De facto, aquela submeter-se-ia a Ele desde que Ele se dignasse  mostrar-se-lhe nas condições que ela exige para O reconhecer; já os nossos estetas, caso Ele se manifestasse, achariam apenas que o Seu talento não é suficientemente original nem a Sua visão do mundo suficientemente inteligível para o colocar ao mesmo nível dos génios realmente dotados de poder divino."

Robert Musil, O homem sem qualidades I, p. 349

sábado, 17 de dezembro de 2016

"Como acontece com muitos homens que chegaram a uma situação importante, esse sentimento consistia, longe de qualquer egoísmo, num amor profundo pelo que é útil, digamos, a um nível universal e supra-pessoal; por outras palavras, numa veneração sincera por aquelas coisas sobre as quais construímos o que nos é vantajoso, não pela simples razão de o construirmos, mas em harmonia e em concomitância com isso e por razões de ordem geral. Trata-se de uma questão de grande importância: um cão de raça procura o seu lugar debaixo da mesa, insensível aos pontapés, não porque é cão e se rebaixa, mas por dedicação e fidelidade; também na vida os indivíduos frios e calculistas não conseguem metade do êxito alcançado por aquelas almas mais perfeitamente equilibradas capazes de nutrir pelas pessoas e pelas situações que lhes são proveitosas sentimentos verdadeiramente profundos."

Robert Musil, O homem sem qualidades I, p. 40