domingo, 23 de agosto de 2015

"- Não é a verdade que é sagrada, mas a procura da nossa própria verdade! Haverá acto mais sagrado do que a  auto-inquirição? A minha obra filosófica, dizem alguns, está construída sobre areia: os meus pontos de vista mudam constantemente. Mas uma das minhas máximas é: Transforma-te em quem és. E como descobrir quem e o que se é sem a verdade?"

Irvin D. Yalom, Quando Nietzsche Chorou

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

"- Reparte comigo depressa. E caluda, ouviste?...
Foi numa ocasião destas que Gaitinhas o encontrou.
- Deixa o rapaz.
- Põe-te a mexer, Gaitinhas...
- Se o deixares, dou-te estas nozes e figos.
Gineto parou a fitá-lo, embasbacado. Ainda nenhum repartira com ele, sem pesar. E pela segunda vez Gaitinhas lhe desarmava a maldade. Foi na feira, quando o avisou de que o pai lhe queria bater, e agora, ali...
- Obrigado - murmurou, largando o outro garoto.
Subiram os dois a ladeira do Mirante e foram sentar-se no morro.
- Toma figos - ofereceu Gaitinhas.
- Eu tenho.
- Então para que roubavas?
- Sei lá.
Gineto não quis confessar que não pedia porque o escorraçavam das portas, chamando-lhe ladrão e vadio. Nunca mais esqueceria a tareia que, há um ano, apanhara das mãos do Sr. Castro. Entrara confiante no jardim: - Pão, por Deus...
- Toma lá, rapaz...
E as pancadas deixaram-lhe marcas no corpo, apenas porque apedrejara o caseiro quando fora assaltar a Quinta Alta.
Talvez por isso, por esse castigo cobarde e tardio, é que ele andava assim a escorraçar os garotos com mais sorte.
- Gaitinhas: és meu amigo?
- Sou, pois.
Gineto sorriu. Nunca tivera um amigo assim. Os outros adulavam-no por medo, bem sabia. A não ser o Sagui, todos lhe queriam mal, embora o respeitassem.
Gaitinhas tirou do bolso a gaita de beiços e pôs-se a tocar uma canção em voga, que o companheiro ouviu, embevecido. Não percebia nada de música; mas aquela canção era, decerto, a mais bela do mundo. Sumia-lhe as cicatrizes que o pai do Arturinho lhe deixara no corpo e na alma, e levaram-no para braços amigos que jamais conhecera.
- É bestial, pá! - foi só o que soube dizer, quando Gaitinhas findou.
Pela ladeira do Mirante, a noite ia descendo, devagar. E, devagar, um sentimento bom despontava no peito do Gineto. O silêncio da tarde convidava a confidências. Contaram-nas. Como velhos amigos, descreveram a história das suas vidas curtas, sem história."

Soeiro Pereira Gomes, esteiros