quinta-feira, 30 de abril de 2015

"um raio de sol, como uma mão que me agarra e que me aperta de encontro à sua pele em brasa. É fogo a ser atravessado por cada gesto do meu corpo. São chamas nos meus olhos que abrem o caminho por onde entro e progrido. Eu sou uma força única, verdadeira e incandescente. Afasto-me cada vez mais e sei que, daqui a quarenta quilómetros, regressarei. Afasto-me e aproximo-me. Quarenta quilómetros separam-me de estar aqui a ser outra pessoa. E quarenta quilómetros poderão ser toda a minha vida. Todo o tempo desde o momento em que nasci até ao momento em que morrerei dentro de um único momento que poderá ser quarenta quilómetros. O tempo não saberá de mim. Serei outro. Desconhecerei a distância do tempo. E regressarei ao estádio. Regressarei aqui. Único durante metros e tempo"

José Luís Peixoto, Cemitério de Pianos

terça-feira, 28 de abril de 2015

"As paixões humanas são misteriosas, e as das crianças não o são menos que as dos adultos. As pessoas que as experimentaram não as sabem explicar, e as que nunca as viveram não as podem compreender. Há pessoas que arriscam a vida para atingir o cume de uma montanha. Ninguém é capaz de explicar porquê, nem mesmo elas. Outras arruinam-se para conquistar o coração de uma determinada pessoa que não quer saber delas para nada. Outras destroem-se a si mesmas porque não são capazes de resistir aos prazeres da mesa - ou da garrafa. Outras ainda arriscam quanto possuem num jogo de azar, ou sacrificam tudo a uma ideia fixa que nunca se pode realizar. Algumas pensam que só podem ser felizes noutro sítio que não aquele onde estão e vagueiam pelo mundo durante toda a vida. Há ainda as que não descansam enquanto não conquistam o poder. Em suma, há tantas paixões diferentes quantas as pessoas.
A paixão de Bastian Baltasar Bux eram os livros."

Michael Ende, A história interminável

quarta-feira, 22 de abril de 2015

"Burroughs relata um episódio elucidativo: "Vi um filme em que havia um balão que subitamente e inesperadamente encheu e desatou a subir ares fora. As pessoas que seguravam os cabos não largaram e foram arrebatadas e a maior parte delas não tinha QI de sobrevivência suficiente que lhe permitisse largar a tempo. Segundos depois estão já, a trezentos metros do chão, sessenta pessoas. Os que não largaram a corda caíram a mil ou a mil e quinhentos metros do chão. Uma lição fundamental em sobrevivência é aprender a largar.""

Gonçalo M. Tavares, Atlas do corpo e da imaginação

terça-feira, 21 de abril de 2015

"Enquanto na realidade exterior os referenciais são comuns, físicos, partilháveis, não egoístas, em relação à realidade interior, aos sentimentos, às sensações, os referenciais são sempre absolutamente centrados no Eu. É a partir de mim, das minhas sensações, que eu posso perceber as sensações dos outros, enquanto, por exemplo, na medição de um terreno, é a partir de uma certa convenção instrumental e processual que eu percebo as distâncias e os tamanhos. Para medir o exterior há réguas públicas, colectivas; para medir o interior há apenas réguas privadas, diferentes entre si, impartilháveis.
O facto de duas pessoas conversarem sobre o que sentem é quase um milagre, e entra num campo completamente diferente (num campo quase misterioso) daquele que existe, com muito maior objectividade, na conversa acerca de acontecimentos do mundo - fora de cada corpo, portanto.
Pergunta, então, Wittgenstein, pegando no exemplo de uma pessoa com dores:
"Não teríamos seguramente pena dela se não acreditássemos que ela tinha dores; mas será que esta é uma crença filosófica, metafísica? Terá um realista mais pena de mim do que um idealista ou um solipsista?"
Eis uma pergunta que coloca tudo em jogo. Eu tenho de confiar no que o outro diz que sente. Estamos no campo da crença individual, e a crença individual isola, inevitavelmente, um indivíduo de outro."

Gonçalo M. Tavares, Atlas do corpo e da imaginação

segunda-feira, 20 de abril de 2015

actos e ética
"Certos pensamentos funcionam como murros, como movimentos de quebrar abruptamente uma ligação que há muito parecia estabelecida e por isso mesmo definitiva. Murros, empurrões, beliscões, abraços: todos estes movimentos físicos poderão ser registados também entre uma pessoa e a sua interpretação do mundo; como se realmente fossem duas entidades: o corpo em si, com os seus braços, a sua pele, os seus sentimentos, pensamentos e órgãos, e uma certa consciência global, não definível por completo, mas em que se fundam todos os pequenos actos. Actuamos de determinada forma sobre a erva daninha do jardim porque temos uma concepção do mundo. Mato ou não mato o minúsculo caracol que passa à minha frente porque tenho (ou não) uma determinada filosofia da existência.
Por vezes, claro, agimos imprudentemente e sem consciência contra a nossa visão do mundo; e daí o arrependimento. Estar arrependido é tomar consciência de que um determinado acto praticado por nós foi contra a nossa visão do mundo: esse acto escapou-me, podemos dizer. Escapou ao nosso controlo, ou melhor, escapou ao controlo do nosso sistema de interpretação dos acontecimentos. E interpretar não é mais do que atribuir, em primeira análise, uma marca de bondade ou maldade a um acto. Interpretar é julgar, e há dois tipos de acções individuais: a acção que acontece antes de ser julgada pelo próprio indivíduo, instintiva; e a acção que acontece depois de ser julgada pelo indivíduo, planeada. Nesse sentido, todas as acções que são executadas depois de uma prévia reflexão sobre os seus efeitos são executadas porque foram julgadas como boas. Porém, grande parte dos actos maus foram praticados depois de planeados. Sei que este acto pertence à categoria da maldade, mas mesmo assim vou fazê-lo. Ou pior: por isso mesmo vou fazê-lo."

Gonçalo M. Tavares, Atlas do corpo e da imaginação

domingo, 19 de abril de 2015

"Tese curiosa, esta: em vez de se formalizarem leis para impedir as más práticas humanas, desenvolver-se-ia sim a técnica de modo a que esta consiga alterar a Natureza, fazendo-a mais resistente às práticas humanas; por exemplo: em vez de se proibir o despejo de produtos poluentes na água, desenvolver uma técnica que faça com que a água suporte, com indiferença, tais despejos poluentes; e mais: que a água consiga transformar esses produtos poluentes em produtos bons para o Homem e para si própria, Natureza. Os problemas causados pelo desenvolvimento da técnica seriam então corrigidos com mais técnica e não com leis limitativas do comportamento dos homens e da sociedade. Uma proposta original, uma possibilidade que o pensamento não deve ignorar."

Gonçalo M. Tavares, Atlas do corpo e da imaginação

sábado, 18 de abril de 2015

""O mais curioso é que neste mundo de máquinas e de caminhos de ferro", diz uma das personagens, "enquanto circulam os comboios e trabalham as fábricas, dois homens se defrontem e disparem um contra o outro." Espanta, pois, que no meio desta transformação do mundo mole em mundo duro se mantenham emoções - se mantenha o ódio.
Continua Bertrand, uma das personagens do romance: "O que chamamos sentimentos constitui o que há de mais persistente no nosso ser. Trazemos connosco um fundo indestrutível de conservadorismo. São os sentimentos, ou antes, convenções sentimentais."
Como se o progresso não chegasse nunca a tocar, muito menos a alterar, esse fundo do corpo, essa parte anterior e antiga - a parte que sente. Eis que, lá no fundo, algo no corpo humano, continua - utilizemos de novo a palavra - mole. No entanto, tal diagnóstico não determina o final, o final ainda não chegou: algo se poderá ainda alterar: "Eu penso que o nosso sentimento da vida caminha sempre com um atraso de meio ou mesmo de um século em relação à verdadeira vida, à vida real."
Algo que ainda não progrediu o suficiente - esse tal «sentimento de vida», esse corpo que sente é um corpo desactualizado: "O sentimento é, de facto, sempre menos humano que a vida no meio da qual nos encontramos."
Sentimos ainda, ou o corpo ainda sente porque ainda não evoluiu o bastante; o sentimento "é preguiçoso", e o mundo é dominado "pela preguiça do sentimento".
É como se os sentimentos humanos estivessem ainda no século XIX e a técnica já no século XXI."

Gonçalo M. Tavares, Atlas do corpo e da imaginação

sexta-feira, 17 de abril de 2015

"Eis uma história, de entre as "Histórias do Sr. Keuner", contada por Arendt, curiosamente numa crítica a certas atitudes políticas de Brecht: «Em tempos sombrios», conta uma das histórias, «um agente do poder chegou a casa de um homem que 'aprendera a dizer não'. O agente confiscou a casa e os víveres do homem e perguntou-lhe: 'Queres ser meu criado?' O homem meteu-o na cama, tapou-o com um cobertor, velou-o durante o sono, e obedeceu-lhe durante sete dias. Mas fez tudo isto sem pronunciar uma palavra. Ao cabo dos sete dias, o agente estava gordo de tanto comer, dormir e dar ordens, e morreu. O homem embrulhou-o no cobertor imundo, pô-lo fora de casa, lavou a cama, pintou as paredes de novo, suspirou de alívio e respondeu: 'Não'.»"

Gonçalo M. Tavares, Atlas do corpo e da imaginação

sábado, 11 de abril de 2015

"Estar mais perto nem sempre é ver melhor. A emoção pode, neste sentido, ser considerada como um ver perto de mais. Como nas palavras de Llansol: «chora em vez de ver»."

Gonçalo M. Tavares, Atlas do corpo e da imaginação

quinta-feira, 9 de abril de 2015

"A Maga teria feito o mesmo, é incapaz de insistir, não tem o menor sentido das distâncias, o tempo desfaz-se na mão dela, anda aos tropeções com o mundo. É exactamente por isso, digo-to de passagem, que é absolutamente perfeita na sua forma de denunciar a falsa perfeição dos outros."

Julio Cortázar, O Jogo do Mundo (Rayuela), capítulo 54

quarta-feira, 8 de abril de 2015

"- A explicação é um erro bem vestido - disse Oliveira. - Aponta isso."

Julio Cortázar, O Jogo do Mundo (Rayuela), capítulo 46