domingo, 22 de março de 2015

"Tinha a certeza que o velhote não tinha nada de grave, mas continuava a ver a sua cara quase plácida - mais a dar para o perplexa - enquanto o estendiam sobre a maca por entre frases de ânimo e cordiais «Allez, pépère, ce n'est rien, ça!» vindos do maqueiro, um ruivo que devia dizer a mesma coisa a toda a gente. «A não-comunicação total», pensou Oliveira. «Não é tanto que estejamos sozinhos, isso sabe-se de sobra e ponto final. Estar só é em definitivo estar só dentro de um certo plano, no qual outras solidões poderiam comunicar connosco se isso fosse possível. Mas qualquer conflito, acidente de rua ou declaração de guerra provocam uma intersecção brutal de planos diferentes, e um homem que talvez seja uma eminência do sânscrito ou da física quântica é transformado em pépère pelo maqueiro que o ajuda. Edgar Poe metido numa carroça de carga, Verlaine nas mãos de uns medicozecos, Neval e Artaud frente-a-frente com os psiquiatras. O que é que o boticário italiano de Keats poderia saber dele quando o sangrava e fazia morrer à fome? Se esses homens guardam silêncio (como é provável), os outros triunfam cegamente, sem más intenções, claro, sem saber que esse que operam, esse tuberculoso ou esse ferido despido sobre a cama está duplamente só, rodeado de seres que se movem como se estivessem atrás de uma redoma de vidro, vindos de outro tempo...»"

Julio Cortázar, O Jogo do Mundo (Rayuela), capítulo 22

sábado, 21 de março de 2015

"- Conta-lho com todos os detalhes - disse Oliveira.
- Oh, uma ideia geral é mais do que suficiente - disse Gregorovius.
- Não há ideias gerais - disse Oliveira."

Julio Cortázar, O Jogo do Mundo (Rayuela), capítulo 15
"(...) porque só as ilusões eram capazes de mover os seus fiéis, as ilusões e não as verdades."

Julio Cortázar, O Jogo do Mundo (Rayuela), capítulo 12

quinta-feira, 19 de março de 2015

"Pode ser que exista um reino milenar, mas se alguma vez chegarmos a atingi-lo, se chegarmos a sê-lo, deixará de se chamar assim. Enquanto não tirarmos o chicote da história ao tempo, enquanto não acabarmos com o inchaço de tantos até, continuaremos a tomar a beleza como um fim, a paz por um desiderato, estaremos sempre do lado de cá da porta, onde a realidade nem sempre é má, onde um número considerável de pessoas encontra uma vida satisfatória, perfumes agradáveis, bons ordenados, literatura de alta qualidade, som estéreo, e para quê inquietarmo-nos se o mundo é finito, se a história se aproxima do seu ponto óptimo, se a raça humana se apresta para sair da Idade Média para entrar na era cibernética. Tout va très bien, Madame la Marquise, tout va très bien, tout va très bien.
De qualquer modo há que ser imbecil, poeta, completamente louco para perder mais de cinco minutos com este género de nostalgias facilmente liquidáveis a curto prazo. Cada reunião de gerentes internacionais, de homens-da-ciência, cada satélite artificial, hormona ou reactor atómico esmagam um pouco mais estas falsas esperanças. O reino será de material plástico. Não é que o mundo vá acabar convertido num pesadelo de Orwell ou de Huxley; será muito pior, será um mundo delicioso, feito à medida dos seus habitantes, sem um mosquito, sem um analfabeto, com galinhas enormes e provavelmente com dezoito patas, todas elas deliciosas, com casas-de-banho telecomandadas, água de cores diferentes consoante o dia da semana, uma delicada atenção do serviço nacional de higiene, com uma televisão em cada uma das divisões da casa, grandes paisagens tropicais para os habitantes de Reiquiavique, vistas de iglôs para os de Havana, subtis compensações para domesticar toda e qualquer rebeldia, etcétera.
Um mundo satisfatório para pessoas razoáveis.
Mas será que vai restar alguém, algum homem, que não seja razoável?
Num canto qualquer, um vestígio do reino esquecido. Numa morte violenta, que castigue o infractor por se ter recordado do reino. Numa gargalhada, numa lágrima, a sobrevivência do reino. No fundo, não parece provável que o homem acabe por matar o homem. Vai-lhe escapar, vai apoderar-se dos comandos da máquina electrónica, do foquetão espacial, fintar tudo isso e depois que o apanhe quem puder. Pode matar-se tudo, menos a nostalgia do reino. Levamo-la na cor dos olhos, em cada amor, em tudo o que nos atormenta profundamente, em tudo o que nos empurra, em tudo o que nos engana. Wishful thinking, talvez, mas essa podia ser outra definição possível do bípede implume."

Julio Cortázar, O Jogo do Mundo (Rayuela), capítulo 71


terça-feira, 17 de março de 2015

"Num excerto de Morelli, esta epígrafe de L'Abbé C. de Georges Bataille: «Il souffrait d'avoir introduit des figures décharnées, qui se déplaçaient dans un monde dément, qui jamais ne pourraient convaincre.»
Um apontamento a lápis, quase ilegível: «Sim, às vezes sofre-se, mas é a única saída decente. Chega de romances hedonistas, pré-mastigados, com psicologias. É preciso esticarmo-nos ao máximo, ser voyant como Rimbaud desejava. O escritor hedonista não passa de um voyer. Por outro lado, chega de técnicas puramente descritivas, de romances «de comportamento», simples argumentos de cinema sem o resgate das imagens.»"

Julio Cortázar, O Jogo do Mundo (Rayuela), capítulo 116

segunda-feira, 16 de março de 2015

"Quantas vezes me perguntei se isto não passava de simples literatura, escrita num tempo em que corremos para o engano através de equações infalíveis e máquinas de conformismos. Mas não será também literatura perguntar-se se sabemos encontrar o outro lado do hábito ou se mais vale deixarmo-nos levar pela cibernética? Revolta, conformismo, angústia, alimentos terrestres, todas as dicotomias: o Yin e o Yang, a contemplação do Tatigkeit, fardo de palha ou perdiz faisandée, Lascaux ou Mathieu, que amálgama de palavras, que dialéctica de bolso, com tormentas de pijama e cataclismos de sala de estar. O simples facto de nos interrogarmos sobre a escolha a fazer vicia e turva o elegível. Sim, não, desta forma... É como se uma escolha não pudesse ser dialéctica, como se a forma como é colocada a empobrecesse, isto é, a falseasse, isto é, a transformasse noutra coisa. Entre o Yin e o Yang, quantos eões? Do sim ao não, quantos talvez? Tudo é literatura, isto é, fábula. Mas de que é que nos serve a verdade que deixa o honesto proprietário angustiado? A nossa verdade possível tem de ser invenção, isto é, escrita, literatura, pintura, escultura, agricultura, piscicultura, todas as turas deste mundo. Os valores, turas, a santidade, uma tura, a sociedade, uma tura, o amor, pura tura, a beleza, tura das turas"

Julio Cortázar, O Jogo do Mundo (Rayuela), capítulo 73

sábado, 14 de março de 2015

Poema em linha reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,

Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado
[sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida…

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)