quinta-feira, 25 de junho de 2015

OS CHIFRES DE CA MELO

"Cer Vo era um animal amargurado e mortificado pelo seu aspecto de todo comum, ou, antes, grosseiro. Que era que distinguia Cer Vo de qualquer outro animal dotado de quatro patas e de uma cauda? Nada, absolutamente nada, nem mesmo a cor, o vulgar marron, tipo cão que foge.
Ora, certo dia foi anunciado o grande baile dos animais providos de chifres. Cer Vo gostaria de ir, mas, ai de mim!, era um animal tão comum, tão comum, que não tinha sequer um chifre ou dois em qualquer parte da cabeça. Em resumo, se não fosse pelo seu tamanho, Cer Vo poderia ser facilmente confundido por uma vulgaríssima ovelha. Convirá, porém, saber que naquela época Ca Melo, animal ainda hoje pleno de originalidade, tinha dois magníficos chifres com vários galhos e com ramificações em todos os sentidos.
Ca Melo não ia ao baile dos «cornudos» porque apanhara uma ponta de ar na sua bossa anterior. Cer Vo foi ter com ele e disse-lhe logo, sem muitas cerimónias:
- Gostaria muito de ir a este baile dos animais com chifres. Mas, infelizmente, não tenho chifres. Empresta-me os teus até amanhã. Amanhã de manhã trago-tos, palavra de ruminante!
Ca Melo era um daqueles indivíduos que preferem dar um desgosto a si mesmos do que um prazer a outro. Por isso, respondeu secamente:
- Nem por sonhos! Os chifres, preciso deles e não os empresto.
- Aluga-mos. Em troca dou-te um molho de feno de primeira qualidade.
- Por amor de Deus. E depois? Passo a ser o alugador de chifres?
- Mas se não vais ao baile, que falta te fazem?
- Servem-me para coçar a pança. E asseguro-te que tenho nisso um grande prazer.
- Porque não coças a pança com o casco e me dás os chifres a mim?
- Não, os chifres não são para emprestar. Não faltaria mais nada. Cada um tem os seus. E quem não os tem, deve passar sem eles.
- Cer Vo compreendeu, nesta altura da conversa, que com o ataque, por assim dizer, frontal não iria conseguir nada. E pensava em tornear o obstáculo. Sabia que Ca Melo era de uma vaidade apenas igual ao seu egoísmo. Por isso, respondeu:
- Mas tu não tens necessidade dos chifres, porque já és, quer o saibas ou não, o animal mais original de toda a criação. Tens duas bossas - um autêntico insulto ao pobre dromedário, que tem apenas uma; tens as pernas finas, que sustentam uma grande pança além das bossas já referidas; tens olhos enormes, lânguidos e reflexivos, com pestanas tão compridas que parecem fingidas; tens uma cauda com um longo tufo de pêlos; tens umas narinas tão grandes que se pode espetar nelas uma maçã de tamanho médio; tens uma cor de pêlo bem conhecida pela cor de pêlo de camelo. E qual é o animal que se ajoelha e reza ao Senhor antes de se erguer da terra e empreender uma longa caminhada através do deserto?
»Mesmo sem chifres, tu és o animal mais extraordinário do mundo; enquanto eu, que sou? Nada, absolutamente nada, não tenho sequer um par de vulgaríssimos chifres.
Ca Melo retorquiu:
- Sim, é verdade, mas os chifres fazem falta à estética da minha cabeça. Que seria a minha cabeça sem chifres? Não vês que a minha cabeça exige chifres?
- Haveria muito a dizer - rebateu o outro - quanto ao facto de os teus chifres serem necessários à estética da tua cabeça. Mas admitamos, por um momento, que isso seja verdade. Infelizmente, porém, se são úteis à estética da cabeça, são, pelo contrário, prejudiciais à do corpo. Não vês que o seu peso foi, pouco a pouco, transformando o pescoço num «esse» ou, se preferes, numa serpente? Imagina como, sem esse peso dos chifres, o pescoço se te endireitaria! Ficarias com um belo pescoço, direito como o do cavalo!
- Mas como sei eu se ficarei melhor sem chifres ou com o pescoço direito? - respondeu Ca Melo. Há coisas que têm de ser vistas primeiro, não se podem imaginar. Pode até acontecer que, sem chifres, me dê conta de ficar semelhante à tartaruga, que é, notoriamente, o animal mais feio do universo.
Cer Vo, surpreendido, inquiriu:
- Que tem a tartaruga a ver, agora?
- Disse isso por dizer.
- Bem. Eu, então, digo, também por dizer, que tu tens tudo a ganhar em tentar a experiência. Até porque, além do mais, não me ofereces os chifres, emprestas-mos.
- E como farei para os reaver?
- É muito simples. No dia seguinte ao da festa, irei ao rio, quando lá estiveres para fazeres a tua habitual beberagem quotidiana; e restituir-tos-ei tal como os recebi. Só te peço que, se me atrasar, me esperes: é sabido que, depois de uma festa, se dorme até mais tarde, de manhã.
Em suma, tanto fez e disse que Ca Melo, por fim, tirou os chifres e deu-lhos. Cer Vo pô-los na cabeça e, observando-se ao espelho, viu que lhe ficavam a matar. Todo contente, correu para a festa.
No que respeita à festa, pois, podem imaginá-la perfeitamente, se vos disser que estavam presentes, sem excepção, todos os animais providos de chifres. Admiravam-se chifres de todos os feitios e de todos os tamanhos; mas os mais bonitos de todos eram, sem dúvida, os de Cer Vo. Tão bonitos que, ao ver aqueles chifres realmente fascinantes, uma tal An Tílope se apaixonou loucamente por ele. Dançaram juntos todas as danças, da primeira à última; os seus chifres viam-se em toda a parte acasalados, no bar e na sala, no jardim e nos salões, escada abaixo e escada acima, dentro e fora dos quartos de cama da grande villa em que se efectuava o baile.
Por fim, An Tílope disse que, se não se casassem rapidamente, ela se mataria com o desgosto. E Cer Vo, que, de resto, estava igualmente apaixonado, aceitou com entusiasmo a ideia do matrimónio.
Assim, depois do baile, nem foram sequer a casa. Esperaram, dançando, que chegasse a manhã, e, do baile, seguiram directamente para a igreja, onde o reverendo Cabrito-Montês os uniu pelos laços regulares do matrimónio.
Os dois noivos foram viver numa belíssima casinha, ao fundo de um bosque. Mas havia agora qualquer coisa que impedia Cer Vo de ser feliz: o compromisso que assumira com Ca Melo de lhe restituir os chifres, logo que a festa acabasse. Que fazer? Por um lado, não havia dúvida de que fizera essa tal promessa a Ca Melo; por outro, porém, o que diria An Tílope mal descobrisse que Cer Vo, na verdade, não tinha chifres, aqueles chifres que, justamente, tanto tinham contribuído para a fazer apaixonar?
Cer Vo reflectiu muito e, por fim, decidiu não restituir os chifres ao legítimo proprietário. E, deste modo, ficou Ca Melo sem chifres. Talvez seja por isto que, quando Ca Melo vai beber ao rio, o faça muitíssimo lentamente, olhando à volta durante todo o tempo: espera sempre que Cer Vo chegue e lhe entregue os chifres."

Alberto Moravia, Fábulas Proibidas

domingo, 21 de junho de 2015

"A actividade muscular de um cidadão que trata durante todo o dia da sua vida é consideravelmente superior à de um atleta que, uma vez ao dia, levanta um enorme peso. Isto foi confirmado pela fisiologia, o que nos permite dizer que até as pequenas acções da vida quotidiana, na sua soma social e pela possibilidade que têm de ser somadas, produzem mais energia do que as acções heróicas; perante isso, as acções heróicas acabam por parecer mesmo absolutamente irrisórias, como um grão de areia colocado, num gesto de tremenda ilusão, sobre uma montanha. A ideia agradava-lhe.
Mas temos de acrescentar que ela não lhe agradava pelo facto de ele apreciar a vida burguesa; pelo contrário, o que lhe agradava era apenas contrariar as suas inclinações, que em tempos tinham sido outras. Talvez seja precisamente o homem comum que intui o começo de um novo e colossal heroísmo colectivo, semelhante ao das formigas. Um dia vão chamar-lhe heroísmo racionalizado, e será objecto de grande admiração. Mas quem é que, hoje, poderá saber uma coisa dessas? Questões como esta, sem resposta e da maior importância, havia-as antes às centenas. Andavam no ar, queimavam-nos os pés. Os tempos estavam a mudar. As pessoas que nessa altura ainda não eram vivas não vão acreditar, mas já então, e não apenas hoje, o tempo corria à velocidade de um camelo. A diferença é que antes não se sabia para onde ele corria. E também não era possível distinguir o que estava em cima e o que estava em baixo, o que avançava ou recuava. «Podemos fazer o que quisermos», pensou o homem sem qualidades, encolhendo os ombros. «No meio de toda esta confusão de forças, isso não tem a mínima importância!»"

Robert Musil, O homem sem qualidades

sábado, 20 de junho de 2015

"Uma vez ouvi um norte-americano definir a fé da seguinte maneira: «É essa faculdade que nos permite acreditar em coisas que sabemos não serem verdade.» Por uma vez, segui esse homem. Ele quis dizer que devemos ter o espírito aberto, e não permitir que um pequeno pedaço da verdade interrompa a torrente da grande verdade, tal como uma pedra pode fazer descarrilar um comboio. Primeiro obtemos a pequena verdade. Ótimo! Guardamo-la e avaliamo-la, mas ao mesmo tempo não devemos permitir que ela mesma se julgue toda a verdade do universo."

Bram Stoker, Drácula, 1897

terça-feira, 2 de junho de 2015

"A perigosa intuição de Platão para os temas perigosos encontra o ponto cego de toda a pedagogia e política da alta cultura: a desigualdade efectiva dos homens ante o conhecimento dá lugar ao poder. Sob a forma lógica de um exercício grotesco da definição, o diálogo do Político desenvolve o preâmbulo de uma antropotécnica política; nele não se trata já de dirigir, domesticando-o, um rebanho já dócil, mas de criar sistemática e repetidamente exemplares humanos mais próximos do seu estado ideal. O exercício começa de maneira tão cómica, que até o seu final, que o é muito menos, também poderia facilmente suscitar riso. Que é mais grotesco que uma definição da arte do Estado como uma disciplina que teria que ver com o andar a pé dos seres que vivem em rebanho (pois é bem sabido que os condutores de homens não exercem a criação de animais aquáticos, mas de animais que andam sobre terra)? Entre estes há que separar os alados dos não alados e caminhantes, para se poder chegar às populações humanas, que, como é sabido, carecem de asas e plumas. Então, continua dizendo o Estrangeiro, este mesmo povo pedestre sob o domínio da natureza, de novo se divide claramente em dois grupos: «uns, sem cornos, os outros, com cornos». Uma coisa destas, o interlocutor inteligente não precisa que lha digam duas vezes. A ambos os grupos correspondem igualmente dois tipos de arte da pastorícia: pastores para rebanhos de animais que têm cornos, e pastores para rebanhos que os não têm. Seria assim evidente que só se encontrará o verdadeiro condutor dos grupos humanos eliminando os pastores dos animais com cornos. Pois se se quisesse custodiar os homens com pastores de animais com cornos, que mais se poderia esperar do que abusos por parte dos ineptos aparentemente aptos? Por conseguinte, os bons reis ou basileioi, diz o Estrangeiro, apascentam um rebanho sem cornos (Politikós, 265d). Mas isto não é tudo: é ainda sua tarefa cuidar dos seres viventes sem misturar, isto é, criaturas que não copulem fora da sua espécie, como costumam fazer por vezes cavalos e burros. Deverão então velar pela endogamia, e buscar meios de impedir a mestiçagem. Se agregarmos a estes implumes, descornados, endógamos, por último, o carácter bípede, estará seleccionada a arte do guardião, aplicada a bípedes implumes sem cornos, surgidos de acasalamentos sem mistura, como a arte verdadeira, contraposta a todas as outras competências. Esta arte da pastorícia preventiva, deverá por seu turno ser subdividida em tirânica-forçada e livre. Se eliminarmos agora a forma tirânica como falsa e enganosa, o que resta será a arte estatal autêntica, definida como «a guarda voluntária de bípedes voluntários» (Politikós, 276e)."

Peter Sloterdijk, Regras para o parque humano