quarta-feira, 27 de maio de 2015

"Desde que trabalhava com o Führer, James tinha aprendido que a confiança entre criminosos aumentava quanto mais alto se subia. As hipóteses de um passador de rua tentar enganar outro num pequeno negócio de droga eram altas. Mas um negócio de armas no valor de meio milhão de libras entre o Führer e a máfia chinesa para quem os Xu trabalhavam era feito à confiança, porque as consequências de qualquer disputa seriam devastadoras para ambos os lados."

Robert Muchamore, Tsunami

domingo, 24 de maio de 2015

"Claro que a ideia de liberdade é sempre definida de modo grosseiro. Como lembra Fourier: "Quando o rei Luís XVI, bloqueado nas Tulherias pelos partidários da Convenção, era obrigado a assinar todos os decretos que lhe punham à frente" foi feita uma gravura que "o representou fechado na prisão, com as mãos fora das grades, a escrever: Sou livre". (Fourier, Charles - Fourier. Escolha de textos, tradução, prefácio e notas de Ernesto Sampaio, 1996, p. 58, Salamandra)"

Gonçalo M. Tavares, Atlas do corpo e da imaginação

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Na rua


- Boa tarde. Somos jornalistas da SIC e gostaríamos que respondesse a uma pergunta para o programa "Dá cá mais 5".
- Não respondo.
- São só dois minutos.
- Não é uma questão de tempo.
- Então por que motivo não quer responder?
- Tenho vergonha.
- Não tenha.
- Pois, mas tenho. Se errar sei que toda a gente vai gozar comigo.
- Não vão nada. Não se preocupe com isso.
- Vão sim. Não vale a pena atirar-me areia para os olhos. Vivo em Portugal há 62 anos. Sei bem o que a casa gasta.
- Com essa idade já não devia preocupar-se com o que as outras pessoas pensam, não acha?
- O que eu acho é que todos vão gozar comigo se errar e eu não gosto que gozem comigo. Não respondo. Encare a minha atitude como uma forma de protesto. Vivemos numa democracia. Tenho direito a protestar.
- Sim, mas...
- Ouça, não vale a pena insistir. Tenha uma boa tarde. Com licença.
- Pronto. Boa tarde para si também.

terça-feira, 19 de maio de 2015

"Como defende Novalis, o papel do artista, do criador, é unir "sem cessar extremos opostos" e "quanto mais opostos melhor". Unir sem cessar pressupõe unir coisas desunidas, desligadas, e quanto mais afastadas, quanto mais improvável a sua ligação, melhor. Digamos que há ligações colectivas, ligações previsíveis, ligações não imaginativas, ligações que ligam coisas próximas, e, do outro lado, ligações individuais, privadas, no sentido em que não pertencem a mais ninguém e não são copiáveis, são surpreendentes; ligações que só podem ser feitas por indivíduos livres, desligados de fórmulas fixas, porque estas emperram, colocam-se à frente da imaginação e impedem o seu funcionamento.
Ver as coisas do mundo desligadas entre si é um ponto de partida para a imaginação, como se viu atrás. Se tudo está desligado, tudo pode ser ligado, sem qualquer ordem pré-definida."

Gonçalo M. Tavares, Atlas do corpo e da imaginação

segunda-feira, 18 de maio de 2015

"mesmo se não o clamava abertamente, começava já a revestir os meus pensamentos de acordo com as exigências absolutas da publicação, em atenção a mim, e da recepção, em atenção aos outros."

Imre Kertész, A Recusa

sábado, 16 de maio de 2015

"Eu, porém, não sabia se o entendia bem, porque era possível que eu entendesse nele só o que sabia de mim."

Vergílio Ferreira, aparição

quinta-feira, 14 de maio de 2015

"Aí, Maedhros sarou com o tempo, pois o fogo da vida era forte nele e a sua força era do mundo antigo, a força que possuíam os que tinham sido criados em Valinor. O seu corpo recuperou do tormento e tornou-se saudável, mas a sombra da dor sofrida ficou-lhe no coração; e ele viveu para brandir a espada com a mão esquerda, mais mortalmente do que fizera com a direita. Com este feito ganhou Fingon grande renome, e todos os Noldor o louvaram; e o ódio entre as casas de Fingolfin e Fëanor foi apaziguado, pois Maedhros pediu perdão pela deserção em Araman e prescindiu da sua reivindicação de soberano de todos os Noldor, dizendo a Fingolfin: «Se não houvesse nenhuma ofensa entre nós, senhor, mesmo assim a soberania vos pertenceria com justiça, já que sois aqui o mais velho da casa de Finwë e não o menos sábio.» Mas com isso nem todos os seus irmãos concordaram, nos seus corações."

J. R. R. Tolkien, O Silmarillion

terça-feira, 12 de maio de 2015

"É o reflexo da minha cara. Muitas vezes, nestes dias perdidos, fico a contemplá-lo. Não percebo nada desta cara. As dos outros têm um sentido. A minha, não. Nem posso decidir se é bonita ou feia. Acho que é feia, porque mo disseram. Mas não é propriedade que me salte à vista. A bem dizer, até me surpreende que se lhe possam atribuir qualidades desse género, como se se chamasse bonito ou feio a um bocado de terra ou a um bloco de rocha.
Há, todavia, uma coisa cuja vista dá prazer; por cima das regiões moles das faces, acima da testa: é esta bela labareda vermelha que me doura o crânio, são os meus cabelos. Isto sim, é agradável de se ver. É, pelo menos, uma cor nítida: estou contente por ser ruivo. Ali está ela, no espelho, salta aos olhos, irradia fogo. Muita sorte tenho eu: se a minha testa suportasse uma dessas cabeleiras sem brilho que não chegam a decidir-se entre castanho e louro, a minha expressão perder-se-ia no vago, dar-me-ia vertigens."

Jean-Paul Sartre, A Náusea

sábado, 9 de maio de 2015

"Mas claro que a existência de dor no outro é algo que provoca ambiguidade em quem o ama, pois "ao mesmo tempo que me identifico 'sinceramente' com a infelicidade do outro, o que leio nessa infelicidade é que ela existe sem mim e que, sendo infeliz por si próprio, o outro me abandona: se ele sofre sem que eu seja a causa, é porque não significo nada para ele: o seu sofrimento anula-me na medida em que existe fora de mim próprio."
Esta necessidade (egoísta) de responsabilidade exclusiva pela dor do outro - que mais ninguém seja responsável pela tua dor senão eu - coloca a par a unidade e a exclusividade na origem do sofrimento. Se mais ninguém existe senão tu, por onde mais poderei sofrer? Ou, sob outro ponto de vista: eu sou o proprietário da tua dor.
Como alguém que realmente leva no bolso a chave que abre o cofre das dores do outro, numa estranha mistura entre bondade e instinto perverso. Porque um cofre é uma caixa que se pode fechar ou abrir. E quem tem a chave decide.
No fundo, devemos recordar essa pergunta fundamental que surge em O Salteador de Robert Walser:
"As pessoas que vivem consigo são felizes?""

Gonçalo M. Tavares, Atlas do corpo e da imaginação

sexta-feira, 8 de maio de 2015

"Dantes - mesmo muito tempo depois de me ter deixado -, Anny inspirava os meus pensamentos, como se eu quisesse ser-lhe útil. Agora já não penso por ninguém; nem sequer me ocupo a procurar palavras. Mais ou menos depressa, uma corrente flui dentro de mim, mas não retenho nada, deixo andar. A maior parte das vezes, como não se prendem as palavras, os meus pensamentos ficam em estado de nevoeiro. Desenham formas vagas e engraçadas, depois imergem, e esqueço-me logo deles."

Jean-Paul Sartre, A Náusea

terça-feira, 5 de maio de 2015

"Cansada do meu cansaço, última lua branca, única lembrança que me dói, nem isso sequer. Ter morrido, antes dela, sobre ela, com ela, girarmos, morto sobre morta, à volta dos pobres homens, e não termos de morrer nunca mais, de entre os moribundos. Nem sequer, nem sequer isso. A minha lua foi aqui em baixo, aqui muito em baixo, o pouco que eu soube desejar. E um dia, dentro em breve, numa noite da terra, em breve, debaixo de terra, um moribundo dirá, como eu, à luz da terra: Nem sequer isso, nem sequer isso, e morrerá, sem ter conseguido encontrar uma lembrança que o faça chorar."

Samuel Beckett, Malone está a morrer

sábado, 2 de maio de 2015

"O homem encostado à parede, cansado de caminhar de um lado para o outro, livre (de movimentos) para resolver os problemas do dia-a-dia: o apetite, o frio, o desconforto, a solidão. E do outro lado os meios de resolução: o trabalho, o amor, a amizade - e esse homem que não pára, sempre de um lado para o outro, a uma certa velocidade; homem do movimento porque é livre, homem esse que, finalmente, num certo momento, se cansa de não parar, e exige a si próprio - e talvez ao mundo - a imobilidade; e com ela exige ainda algo mais obsceno: não quero mais ser livre, podem ficar com os meus movimentos, com as minhas possibilidades, deixem-me apenas uma, uma única possibilidade: a de permanecer vivo: todos os outros movimentos façam-nos por mim. Homem (imaginemos) cansado dos movimentos que o trabalho exige, dos movimentos que o amor e a amizade exigem e que, a certa altura, pede apenas a satisfação do apetite e a manutenção do circuito respiratório: não quero mais, quero o mesmo; não quero mudar.
Porém, há uma velocidade não-humana, uma velocidade que pertence exclusivamente ao reino da Natureza e cujo motor estará localizado num sítio ao qual as mãos humanas jamais chegarão; e essa velocidade, esse movimento que atravessa o mundo e domina a biologia, jamais cessa."

Gonçalo M. Tavares, Atlas do corpo e da imaginação