quinta-feira, 27 de novembro de 2014

"- O senhor... o senhor disse uma vez que estava disposto a dar uma vista de olhos à minha tese, quando já estivesse avançada.
- Sim - confirmou Stoner, assentindo com a cabeça. - Pois disse. Claro. - Depois, pela primeira vez, reparou que ela tinha um dossiê no colo.
- Claro que se estiver ocupado... - disse, hesitante.
- Não, não estou - retorquiu Stoner, tentando infundir algum entusiasmo na voz. - Desculpe. Não queria parecer distraído.
Hesitante, ela estendeu-lhe o dossiê. Stoner pegou nele, sopesou-o e sorriu.
- Pensei que estivesse mais avançada do que isto - comentou.
- E estava - respondeu ela. - Mas recomecei tudo do zero. Decidi mudar a minha abordagem e... agradecia muito que me desse a sua opinião.
Ele sorriu novamente e fez que sim com a cabeça; não sabia o que dizer. Ficaram sentados, num silêncio constrangido, durante uns minutos.
Por fim, ele disse:
- Quando é que precisa que eu lhe devolva a tese?
Ela abanou a cabeça.
- Quando quiser. Quando puder.
- Não quero atrasá-la - disse ele. - E se for esta sexta-feira? Parece-me o tempo suficiente para eu ler tudo. Que tal às três horas?
Ela levantou-se abruptamente tal como se sentara
- Obrigada. Não quero incomodá-lo. Obrigada. - E, virando as costas, saiu, esguia e muito direita, do gabinete.
Durante uns momentos, Stoner ficou a olhar fixamente para o dossiê que tinha nas mãos. Depois, pousou-o na secretária e retomou a correcção dos trabalhos do primeiro ano.
Isto passou-se numa terça feira e, nos dois dias que se seguiram, o manuscrito permaneceu em cima da secretária sem ele lhe tocar. Por motivos que não compreendia totalmente, não conseguia abrir o dossiê e começar a leitura que, uns meses antes, teria sido um prazer. Observou-o, desconfiado, como se fosse um inimigo que estivesse a atiçá-lo de novo para uma guerra a que renunciara.
E quando chegou a sexta-feira, ainda não o lera. Viu-o pousado, acusador, em cima da mesa, de manhã, quando recolheu os livros e os papéis para a aula das oito. Quando regressou, pouco depois das nove, quase decidiu deixar um bilhete na caixa do correio de Miss Driscoll, na secretaria, a pedir mais uma semana, mas decidiu dar uma vista de olhos à tese, antes da aula das onze, e dizer umas palavras rotineiras à rapariga, quando passasse pelo seu gabinete à tarde. Não conseguiu fazê-lo, porém, e antes de sair para a sua última aula do dia pegou no dossiê, enfiou-o entre o resto da papelada e atravessou o recinto universitário a passo acelerado em direcção à sala.
Quando a aula acabou, ao meio-dia, foi retido por uns alunos que precisavam de falar com ele, de modo que passava da uma da tarde quando conseguiu despachar-se. Dirigiu-se, com uma espécie de determinação carrancuda, para a biblioteca. Tencionava arranjar uma sala vazia e fazer uma leitura apressada do manuscrito, durante uma hora, antes da reunião com Miss Driscoll, às três.
Mas até no sossego penumbroso e familiar da biblioteca, num recanto vazio que encontrou, escondido nas profundezas das estantes, teve dificuldade em obrigar-se a olhar para o dossiê que levava consigo. Abriu outros livros e leu alguns parágrafos ao acaso; sentou-se, imóvel, inspirando o cheiro a bafio que se desprendia dos livros antigos. Por fim, suspirou. Incapaz de protelar mais, abriu o dossiê e olhou rapidamente para as primeiras páginas."

John Williams, Stoner

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

"É assim (e só isto interessa): por vezes o Destino de um homem não chega a tempo;"

Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia