quinta-feira, 28 de junho de 2012

"Há trinta e cinco anos que trabalho com papel velho e é essa a minha love story. Há trinta e cinco anos que prenso papel velho e livros, há trinta e cinco anos que me sujo de letras, de tal modo que me pareço com as enciclopédias de que durante esse tempo todo devo ter prensado pelo menos três toneladas: sou um cântaro cheio de água viva e água morta, basta inclinar-me um pouquinho e jorram de mim ideias lindas; sou culto independentemente da minha vontade e, assim, nem sei bem quais as ideias que são minhas, e saídas da minha cabeça, e que ideias li. Foi assim que, durante estes trinta e cinco anos, me liguei a mim próprio e ao mundo à minha volta; é que, quando estou a ler, afinal não leio, apenas colho com o bico uma bela frase e chupo-a como um rebuçado, como se bebericasse um cálice de licor durante muito tempo, até que a ideia se espalhe em mim como o álcool; ela dissolve-se em mim tão lentamente que penetra não só no meu cérebro e no coração mas pulsa também nas minhas artérias até às raízes dos capilares.

(...) todas as noites trago, na minha pasta, livros para casa, e o meu apartamento, num segundo andar em Holesovice, está repleto de livros, livros apenas: a cave está cheia e o alpendre já não chega, a cozinha, a despensa e a retrete estão cheias, apenas o caminho para a janela e para o fogão estão livres, na retrete há apenas o espaço para me poder sentar; por cima da sanita, à altura de um metro e meio já há traves e pranchas e em cima delas, até ao tecto, erguem-se os livros, quinhentos quilos de livros; chega um único movimento desajeitado ao sentar-me, um levantar imprudente, para tocar na trave mestra, e meia-tonelada de livros se precipitará sobre mim e me esmagará com as calças descidas. Mas como aqui já não se consegue acrescentar nem um só livro, assim, no quarto, em cima de duas camas juntas, mandei pôr traves e pranchas em forma de um baldaquim, de um dossel de cama, sobre as quais estão arrumados livros até ao tecto; trouxe duas toneladas de livros para casa durante trinta e cinco anos, e, quando estou a adormecer, duas toneladas de livros como uma falena de dois mil quilos pesam sobre os meus sonhos. Às vezes, quando me viro inadvertidamente ou grito e me agito ao dormir, ouço, horrorizado, como os livros escorregam; chega apenas um leve toque de joelho, talvez apenas um grito e como uma avalanche tudo se precipitará sobre mim, uma cornucópia cheia de livros preciosos cairá dos céus sobre mim e esmagar-me-á como um piolho."

Bohumil Hrabal, "Uma solidão demasiado ruidosa"

quarta-feira, 20 de junho de 2012

"Relacionadas com as nossas crenças ilusórias sobre a política e a democracia estão algumas noções respeitantes à política de voto. Encontra-se muito difundida na nossa sociedade uma crença (ou, pelo menos, um comportamento em conformidade com essa crença) segundo a qual, depois de vermos e ouvirmos um candidato na televisão, poderemos fazer previsões acerca da sua actuação se for eleito para o cargo. Pelo contrário, existe um considerável conjunto de provas fornecido pelas experiências sócio-psicológicas de que quando os seres humanos estão frente a outros seres humanos (particularmente quando os vêem a proferir palavras intencionalmente influenciadoras) são péssimos avaliadores do sentido dessas palavras e das suas implicações em termos de comportamento. Existem boas provas, por exemplo, de que, se a opinião do espectador for já favorável ao candidato, interpretará o discurso deste, qualquer que seja, de forma a coadunar-se com a sua própria posição em relação ao problema; enquanto que, se a opinião do espectador em relação ao candidato for desfavorável, interpretará o mesmo discurso em discordância com a sua posição."

Herbert Simon, "A razão nas coisas humanas"

terça-feira, 19 de junho de 2012

"- Entre um escritório aquecido e confortável e esta sala não há a mais pequena diferença - respondeu Andrei Efimich. - O repouso e a satisfação não estão fora do homem, mas dentro de si próprio.
- Que quer isso dizer?
- O homem vulgar espera o bom e o mau do exterior, quer dizer, do carro e do escritório, enquanto o homem que pensa espera-o de si próprio.
- Vá pregar essa filosofia para a Grécia, onde está calor e cheira a laranjas; o clima aqui não favorece.
- (...) Pode resistir-se ao frio como a qualquer outra dor. Marco Aurélio disse: «A dor é a exteriorização viva da dor: faz um esforço de vontade para mudar esta exteriorização, repele-a, deixa de te lamentar, e a dor desaparecerá.» Isto é exacto. O sábio ou simplesmente o homem que pensa, que medita, distingue-se precisamente pelo facto de que despreza o sofrimento. Está sempre satisfeito e nada o desgosta.
- Quer isso dizer que sou idiota, visto que sofro, estou descontente e desgosta-me a maldade humana.
- Não deve pensar assim. Se reflectir, compreenderá a significação de tudo o que é exterior, tudo o que nos inquieta. Há que tentar compreender a vida; nisso está o verdadeiro bem.
- Compreender a vida... - replicou Ivan Dmitrich, franzindo o sobrolho. - O exterior, o interior... Perdão, mas não o compreendo. A única coisa que sei - concordou, levantando-se e olhando irritado para o médico -, a única coisa que sei é que Deus me criou com sangue quente e nervos, como está a ouvir! O tecido orgânico, se é capaz de vida, deve reagir a qualquer excitação. E eu reajo! À dor respondo com gritos e lágrimas; à maldade com indignação; à vilania, com asco. Quanto a mim, isto é, na realidade, aquilo a que se chama vida. Quanto mais débil é o organismo, menos sensível se mostra e mais frouxamente resiste à excitação. E quanto mais elevado, tanto mais sensível e enérgica é a sua reacção à realidade. Como pode ignorá-lo? É você médico e não sabe umas coisas tão elementares! Para desprezar a dor, estar sempre satisfeito e não se preocupar com coisa alguma há que atingir esse estado - e Ivan Dmitrich apontou para o mujique obeso, transbordante de gordura -, ou então ter-se identificado com a dor até ao extremo de perder qualquer sensibilidade em relação a si próprio; ou seja, por outras palavras, deixar de existir.

- Admitamos que a tranquilidade e a satisfação estão dentro do próprio homem, e não fora dele - disse. - Admitamos que há que desprezar o sofrimento e não se admirar com coisa alguma. Mas em que se apoia você para o proclamar? Julga-se um sábio? Um filósofo?
- Não, não sou filósofo, mas isto qualquer pessoa o deve proclamar, porque é sensato.
- Não, o que pretendo saber é porque se considera competente no que respeita à compreensão do mundo, o desprezo pelo sofrimento e tudo o mais. Acaso não terá sofrido nunca? Tem alguma noção do que é o sofrimento? Diga-me: batiam-lhe quando era pequeno?
- Não, meus pais eram contrários aos castigos corporais.
- Pois, a mim, meu pai tocava-me a pavana. Era um funcionário público, de carácter violento, que sofria de hemorróidas, e tinha um grande nariz e pescoço amarelo. Mas falemos de si. Em toda a sua vida nunca ninguém lhe tocou nem com um dedo, ninguém o assustou nem lhe bateu; tem uma saúde de ferro, cresceu amparado por seu pai, que lhe pagou os estudos, e depois obteve imediatamente uma sinecura. Vive de graça há mais de vinte anos, numa casa com aquecimento e luz, tendo uma serviçal; deixam-no trabalhar como e quando quer; pode inclusivamente não fazer nada. É preguiçoso e frouxo por natureza, por isso tratou de organizar a sua vida de modo a que nada o inquietasse nem obrigasse a mexer-se. Abandonou tudo nas mãos do assistente e outros canalhas, enquanto o senhor ficava na sua casa aquecida e silenciosa, juntava dinheiro, lia livros, entregava-se a meditações sobre toda a espécie de sublimes coisas estúpidas e - aqui Ivan Dmitrich parou fitando o nariz vermelho do médico - bebia. Numa palavra, não sabe nada da vida, não a conhece em absoluto; da realidade tem apenas uma noção teórica. Se desdenha do sofrimento e nada o perturba, é por uma razão muito simples: vaidade das vaidades; o externo e o interno, o desprezo pela vida, pelos sofrimentos e pela morte, a compreensão do mundo, o verdadeiro bem: tudo isto é a filosofia mais apropriada ao vadio russo. (...) E o que é esse fantástico «autêntico bem»? Não existe resposta, claro. A nós têm-nos aqui entre grades, apodrecemos, martirizamo-nos, mas isso é belo e racional, porque entre esta enfermaria e um escritório aquecido e confortável não há nenhuma diferença. É uma filosofia muito cómoda; não há nada a fazer, a pessoa tem a consciência tranquila e considera-se sábio... Não, senhor, isso não é filosofia, não é pensamento, não é grandeza de ideias, mas preguiça, mentalidade de faquir, hipóteses... Sim! - voltou a irritar-se Ivan Dmitrich -, despreza o sofrimento, mas se lhe entalassem um dedo numa porta bradava aos céus!"

Anton Tchekov, "A Enfermaria n.º 6 e outros contos"

segunda-feira, 18 de junho de 2012

"Muitas das pessoas da nossa sociedade são menos susceptíveis do que a maioria aos caprichos que acabei de descrever; sofrem de uma aberração diferente. São aquelas cujos interesses políticos estão essencialmente confinados a um único problema, seja o aborto ou como evitá-lo, o controlo do armamento ou a liberdade de possuir armas de fogo, a religião nas escolas ou a liberdade de culto. Estas pessoas reagem a tudo o que possa acontecer na cena política, sobretudo no que respeita à maneira como esse acontecimento afecta o problema que as mobiliza. O seu voto nos candidatos a um cargo é determinado pela posição desses candidatos relativamente ao problema único que as obceca."

Herbert Simon, "A razão nas coisas humanas"

domingo, 17 de junho de 2012

"Enquanto caminhava, em direcção a casa, e meditando, a minha vaidade levou a melhor sobre a minha piedade. Não podia senão orgulhar-me da mestria com que me tinha desembaraçado de Bartleby. Magistralmente, como eu dizia, e assim o veria qualquer pensador desapaixonado. A beleza do meu modo de agir parecia consistir na sua perfeita tranquilidade. Não houvera qualquer vulgar disputa, nem bravatas, nem explosões de cólera, ou passadas largas de cá para lá no escritório, nem ordens violentamente proferidas com veemência, a fim de que Bartleby se pusesse lá fora, fazendo rapidamente uma trouxa com os seus miseráveis trapos. Nada disso. Sem me pôr a gritar para que Bartleby partisse - como alguém de carácter inferior poderia ter feito -, eu presumi que ele deveria partir; e baseado nessa suposição construí tudo o que eu tinha a dizer. Quanto mais pensava no meu procedimento, mais ele me encantava. No entanto, na manhã seguinte, ao acordar, tinha as minhas dúvidas - tinha de certo modo desvanecido pelo sono os fumos da vaidade. Uma das mais serenas e sábias horas que um homem tem é logo após acordar pela manhã. O meu procedimento parecia-me tão sagaz como anteriormente, mas somente em teoria. Como é que ele se mostraria na prática, aí é que estava o busílis. Era verdadeiramente um belo pensamento ter presumido a partida de Bartleby; mas, no fim de contas, essa suposição era somente minha, e não de Bartleby."

Herman Melville, "Bartleby"

sábado, 16 de junho de 2012

"Agora, suponhamos que uma mutação produz um gene altruísta que leva o indivíduo altruísta a empreender uma determinada actividade benéfica para todos os membros do seu grupo característico (mas não para os do deme), com algum sacrifício seu. Para um dado grupo característico, o resultado será o aumento da aptidão dos egoístas em relação à dos altruístas. No entanto, terão lugar algumas variações, de um grupo característico para outro, na proporção dos altruístas para os egoístas. A aptidão média será mais elevada nesses grupos onde existe um maior número de altruístas (desde que as implicações do seu comportamento altruísta encontrem recompensa justa no reconhecimento desse mesmo altruísmo por parte de número significativo de outros elementos do grupo). Os altruístas nestes grupos característicos favorecidos podem ter uma aptidão mais elevada que os egoístas em grupos com um maior número de egoístas. É fácil mostar rigorosamente que, se se verifica uma variação suficientemente grande na proporção de altruístas entre os diferentes grupos característicos, a aptidão média dos altruístas excederá a dos egoístas, implicando que o gene altruísta irá ocupar o lugar do egoísta nessa população.
Não é excessiva a variação requerida para produzir este resultado; de facto, se os altruístas se encontram distribuídos entre os diversos grupos característicos com uma variação tão grande como a da distribuição binominal, predominará o gene altruísta.
(...) O aparente paradoxo neste resultado pode dissipar-se se notarmos que, de um modo geral, os altruístas viverão em grupos característicos com uma proporção de altruístas mais elevada que a que está presente em grupos característicos habitados sobretudo por egoístas. Quer isto dizer que, em média, os altruístas estarão expostos a um meio mais favorável no seu grupo característico do que estarão os egoístas; por isso, os altruístas serão os melhores adaptados."

Herbert Simon, "A razão nas coisas humanas"

domingo, 10 de junho de 2012

"Ficou ali sentada e acabou de beber o chá e pensou nas coisas em que pensava, vestígios de memórias e  imagens fulgurantes e uma amiga de quem tinha saudades e todos os elementos salpicados de sombra que constituem um momento indivisível de uma manhã normal onde o absurdo irrompe de uma maneira tão humana e rotineira que nem sequer podemos fazer uma pausa e reparar no que está a acontecer, com excepção do Ajax que ela precisa de comprar e dos pássaros atrás dela, a rasparem no rebordo metálico do comedouro."

Don DeLillo, "O Corpo Enquanto Arte"

quarta-feira, 6 de junho de 2012

"- Que queres dizer com «meu devido lugar»? Ninguém sabe o seu devido lugar nesta vida e cada um de nós procura o seu próprio jugo. O lugar do comerciante Judas Petunikoff é nos trabalhos forçados, mas ele passeia-se pelas ruas em plena luz do dia e até quer construir uma fábrica. O lugar do nosso professor devia ser ao lado de uma mulher boa e de meia dúzia de filhos, mas ele está na taberna do Vaviloff. E tu mesmo vais procurar um lugar de lacaio ou de criado, mas eu vejo que o teu lugar é entre soldados, porque tu não és burro, és paciente e compreendes a disciplina. Estás a ver? A vida baralha-nos como se fôssemos cartas, e é apenas por acaso, e mesmo então, não por muito tempo, que acertamos no nosso lugar!"

Máximo Gorki, "Seres que outrora foram humanos"

terça-feira, 5 de junho de 2012

"Sermos nós próprios, unicamente nós próprios, é algo de extraordinário. Mas como chegar a isso, como alcançá-lo? Ah!, eis o truque mais difícil de todos. Difícil, precisamente porque não envolve qualquer esforço. Tentas não ser isto nem aquilo, nem grande nem pequeno, nem hábil nem desajeitado... estás a perceber? Fazes o que te vem à mão. De boa vontade, bien entendu. Porque nada há no mundo que não tenha a sua importância. Nada. Em vez de risos e aplausos recebes sorrisos. Pequenos sorrisos de satisfação - e é tudo. Mas é justamente o próprio tudo... mais do que alguém pode pedir. Fazendo o trabalhinho sujo, alivias as pessoas dos seus fardos. Isso torna-as felizes, mas a ti torna-te ainda mais feliz, compreendes? É claro que deves fazê-lo sem ostentação, por assim dizer. Nunca deves mostrar-lhes o prazer que te dá. Se te deixas apanhar, se te descobrem o segredo, estás perdido. Chamar-te-ão egoísta, faças por elas o que fizeres. Podes fazer tudo por elas - chegares mesmo a matar-te de trabalho - enquanto não suspeitarem que te estão a enriquecer dando-te uma alegria que nunca poderias dar a ti próprio..."

Henry Miller, "O sorriso ao pé das escadas"