terça-feira, 29 de maio de 2012

"Que é que dá vida às equações e forma ao universo por elas descrito? O propósito da ciência, quando se constrói um modelo matemático, não é responder à pergunta se existe um universo descrito pelo modelo. Porque se dá o universo ao trabalho de existir? A teoria unificada é tão imperativa que dá origem à sua própria existência? Ou precisa de um criador e, nesse caso, terá ele outro efeito sobre o universo? E quem o criou a ele? Até agora a maior parte dos cientistas têm estado demasiado ocupados com o desenvolvimento de novas teorias que descrevem o que é o universo para perguntarem porquê. Por outro lado, as pessoas que deviam perguntar porquê, os filósofos, não foram capazes de acompanhar o avanço das teorias científicas. No século XVIII, os filósofos consideravam todo o conhecimento humano, incluindo a ciência, como campo seu e discutiam questões como: terá o universo tido um princípio? No entanto, nos séculos XIX e XX a ciência tornou-se demasiado técnica e matemática para os filósofos ou para qualquer outra pessoa, com excepção de alguns especialistas. Os filósofos reduziram o objectivo das suas pesquisas de tal modo que Wittgenstein, o filósofo mais famoso deste século, afirmou: «A única tarefa que resta à filosofia é a análise da linguagem». Que queda para a grande tradição da filosofia desde Aristóteles até Kant!
Todavia, se descobrirmos uma teoria completa, deve acabar por ser compreensível, na generalidade, para toda a gente, e não apenas para alguns cientistas. Então poderemos todos, filósofos, cientistas e pessoas comuns, tomar parte na discussão do porquê da nossa existência e da do universo. Se descobrirmos a resposta, será o triunfo máximo da razão humana, porque nessa altura conheceremos o pensamento de Deus."

Stephen Hawking, "Breve História do Tempo"

segunda-feira, 28 de maio de 2012

"E quando Larbaud, por pura cortesia, se interessou pelo enredo do romance, recebeu esta resposta de Littbarski: «É a história de Hermann, um homem que desbarata a vida a odiar, de uma maneira gratuita, uma pessoa cujo único delito, se é que houve, consistiu em esvaziar, quando criança, uma garrafa de champanhe. Hermann entrega-se de corpo e alma à tarefa de amargurar a vida do inimigo, chegando mesmo a permanecer solteiro para assim não perder um único minuto do seu tempo em nada que não seja a perseguição implacável do esbanjador de champanhe francês. De vez em quando, Hermann efectua certeiros disparos sobre a vida do outro, quer dizer, felizes intromissões no universo do seu inimigo (rouba-lhe a mulher, denuncia os seus negócios, esquarteja-lhe a mãe, mata o cão, queima-lhe a casa, etc), breves mas certeiras rajadas disparadas pelo solteiro em lugares onde o pobre homem odiado não o pode ver: um pobre homem odiado que atravessa o romance da sua vida perplexo e assustado ao constatar que nem sequer o peso dos anos atenua o ódio à sua pessoa por parte de alguém que desconhece e de quem apenas sabe que, manobrando fora da sua vista e do seu alcance, se dedica, com especial obstinação e notável êxito, a amargurar-lhe a vida.»"

Enrique Vila-Matas, "História Abreviada da Literatura Portátil"

domingo, 27 de maio de 2012

"A ideia de que o espaço e o tempo podem formar uma superfície fechada finita e ilimitada tem também profundas implicações no papel de Deus na criação. Com o êxito das teorias científicas na descrição dos fenómenos, a maioria das pessoas acabou por acreditar que Deus permite que o universo evolua segundo um conjunto de leis e não intervém nele para quebrar essas leis. Contudo, as leis não nos dizem qual era o aspecto do universo primitivo. O acto de dar corda ao relógio e escolher como pô-lo a trabalhar continuaria a ser com Deus. Desde que o universo tenha tido um princípio, podemos supor que teve um criador. Mas, se o universo for na realidade completamente independente, sem qualquer fronteira ou limite, não terá princípio nem fim: existirá apenas. Qual seria então o papel do criador?"

Stephen Hawking, "Breve História do Tempo"

sábado, 26 de maio de 2012

"Também sabemos doutra superstição daquele tempo: a do Homem do Livro. Nalguma estante de algum hexágono (pensaram os homens) deve existir um livro que seja a chave e o resumo perfeito de todos os outros: deve haver algum bibliotecário que o tenha estudado e seja análogo a um deus. Na linguagem desta zona hão-de persistir ainda vestígios do culto desse funcionário remoto. Fizeram-se muitas peregrinações à procura d'Ele. Durante um século percorreram em vão os mais diversos rumos. Como localizar o venerado hexágono secreto que o alojava? Alguém propôs um método regressivo: Para localizar o livro A, consultar previamente um livro B que indique o sítio de A; para localizar o livro B, consultar previamente um livro C, e assim por diante até ao infinito... Foi em aventuras destas que desperdicei e consumi os meus anos de vida. Não acho inverosímil que naquela estante do universo haja um livro total; rogo aos deuses ignorados que um homem - um só que seja, há milhares de anos! - o tenha examinado e lido. Se não forem para mim a honra e a sabedoria e a felicidade, que sejam para outros. Que o céu exista, mesmo que o meu lugar seja o inferno. Que eu seja ultrajado e aniquilado, mas que num instante, num ser, a Tua enorme Biblioteca se justifique."

Jorge Luis Borges, "Ficções"

quinta-feira, 24 de maio de 2012

"Portanto, se acreditarmos que o universo não é arbitrário, mas sim governado por leis definidas, teremos, finalmente, de combinar as teorias parciais numa teoria unificada completa que descreva todo o universo. Mas existe um paradoxo fundamental na busca dessa teoria. As ideias sobre as teorias científicas que foram aqui delineadas presumem que somos seres racionais livres para observar o universo como quisermos e tirarmos conclusões lógicas daquilo que observamos. Num esquema como este é razoável supor que seremos capazes de progredir cada vez mais em direcção às leis que governam o universo. Contudo, se houver realmente uma teoria unificada, ela também determinará presumivelmente as nossas acções. E, assim, a própria teoria determinaria o resultado da nossa busca. E por que motivo determinaria que chegássemos às conclusões certas a partir da evidência? Não poderia também determinar que chegássemos à conclusão errada? Ou a nenhuma conclusão?"

Stephen Hawking, "Breve História do Tempo"

quarta-feira, 23 de maio de 2012

"Foi o meu primeiro instinto: protegê-lo. Nunca me ocorreu que houvesse uma maior necessidade de me proteger a mim próprio. A inocência pede sempre silenciosamente protecção, quando seria muito mais sensato precavermo-nos contra ela: a inocência é como um leproso mudo que perdeu o guizo e vagueia pelo mundo sem más intenções"

Graham Greene, "O Americano Tranquilo"


(Sugerido por João Q.)

segunda-feira, 14 de maio de 2012

"«... Havia uma lua grande no meio do mundo. Os meus olhos perdiam-se, a olhar para ti. Os raios da lua filtravam-se sobre a tua cara. Não me cansava de ver essa aparição que tu eras. Suave, esfregada pela lua; a tua boca macia, húmida, irisada de estrelas; o teu corpo cada vez mais transparente na água da noite. Susana, Susana San Juan.»
Quis levantar a mão para ver mais nitidamente aquela imagem, mas as suas pernas retiveram-na como se esta fosse de pedra. Quis levantar a outra mão e foi caindo devagar, de lado, até ficar apoiada no chão como uma muleta que sustentava o seu ombro desossado.
«Eis a minha morte», disse.
O sol partiu, girando sobre as coisas e devolvendo-lhes a sua forma. A terra em ruínas estava diante dele, vazia. O calor aquecia o seu corpo. Os seus olhos quase não se mexiam; saltavam de memória em memória, desfigurando o presente. De repente, o seu coração detinha-se e parecia que também o tempo e o sopro da vida se detinham.
«Desde que não seja uma nova noite», pensava ele.
Porque tinha medo das noites que enchiam a escuridão de fantasmas. De ficar fechado com os seus fantasmas. Era disso que tinha medo."

Juan Rulfo, "Pedro Páramo"

domingo, 13 de maio de 2012

"Era preciso prevenir as pessoas destas coisas. Ensinar-lhes que a imortalidade é mortal, que ela pode morrer, que já aconteceu, que ainda acontece. Que não se anuncia enquanto tal, nunca, que é a duplicidade absoluta. Que não existe no pormenor, mas apenas no princípio. Que certas pessoas podem dela transportar a presença na condição de ignorarem que o fazem. Tal como certas outras pessoas podem detectar-lhe a presença nessas pessoas, na mesma condição, ignorarem que o podem fazer. Que é enquanto ela se vive que a vida é imortal, enquanto está em vida. Que a imortalidade não é uma questão de mais ou menos tempo, que não é uma questão de imortalidade, que é questão de outra coisa que permanece ignorada. Que é tão falso dizer que ela não tem começo nem fim, como dizer que começa e acaba com a vida do espírito uma vez que é do espírito que ela participa e da perseguição do vento. Olhai as areias mortas dos desertos, o corpo morto das crianças: a imortalidade não passa por aí, pára e contorna."

Marguerite Duras, "O Amante"

domingo, 6 de maio de 2012

"a verdade nua e crua já é em si um exagero"

Joseph Roth, "Fuga sem fim"

quinta-feira, 3 de maio de 2012

"Em contrapartida também eu rendi homenagem ao deus do Amor, cujo templo se ergue numa ilha de praias louras e em arco, na areia dourada acariciada pelo mar. E a imagem do deus não é ídolo nem qualquer coisa de visível, mas um som, o puro som da água marinha que entra no templo através dum canal cavado na rocha e que se despedaça numa concha secreta; e ali, devido à forma das paredes e à ampliação da construção, o som reproduz-se num eco infinito que arrebata quem o ouve e causa uma espécie de embriaguez ou de tontura. E a muitos e estranhos efeitos se expõe quem honra este deus, porque o seu princípio comanda a vida, mas é um princípio bizarro e caprichoso; e se é verdade que ele é a alma e a concórdia dos elementos, também pode produzir ilusões, delírios e visões. E eu assisti nesta ilha a espectáculos que me perturbaram pela sua verdade inocente: tanto que tive dúvidas se tais coisas existiam deveras ou se eram antes fantasmas do meu sentimento que saíam de mim e tomavam aparência real no ar porque me tinha exposto ao som enfeitiçado deste deus; e pensando isto, tomei por um caminho que leva ao ponto mais alto da ilha, donde se pode ver o mar de todos os lados. E então apercebi-me de que a ilha era deserta, que não havia nenhum templo na praia e que as figuras e os vários rostos do amor que eu tinha visto como quadros vivos e que compreendem múltiplas gradações do espírito como a amizade, a gratidão, orgulho e a vaidade, todos estes rostos que eu pensava ter visto em formas humanas, eram apenas miragens provocadas por mim, quem sabe por qual sortilégio. E assim cheguei mesmo ao cimo do promontório e enquanto, observando o mar infinito, já me estava a abandonar ao mal-estar que o desengano provoca, uma nuvem azul desceu sobre mim e arrebatou-me para um sonho: e sonhei que te escrevia esta carta, e que eu não era o grego que partiu em busca do Ocidente e mais não voltou, mas que estava apenas a sonhá-lo"

Antonio Tabucchi, "Mulher de Porto Pim"