quinta-feira, 29 de março de 2012


"e a lei, essa coisa sensível que gosta de nós e se preocupa com o estarmos felizes e confortáveis, comove-me. põe-se à espreita dos gestos todos e salta-nos em cima com entusiasmo se lhe parece que nos arrogamos mais espaço que o esperado, ou se simplesmente queremos tomar uma decisão sozinhos, tragando o que é nosso, sem ter de dar conta aos outros do que é nosso, do que toda a vida foi nosso e, agora, é sempre por percentagem do estado também. haviam todas as coisas ser de comer. tudo. carros e casas haviam de ser de comer. e no momento em que estivéssemos para morrer e deixar para impostos e taxas e roubalheiras assim, comíamos tudo e depositávamos no testamento o monte de merda que, se quisessem vê-lo transformado novamente em casas e carros, teriam de usar para estrumar os campos e depois plantar e regar e tomar conta e depois colher até venderem laranjas das boas como antigamente se fazia no país inteiro." 

 A Máquina de Fazer Espanhóis, Valter Hugo Mãe

quarta-feira, 21 de março de 2012

"Ao contrário, se uma jovem for muito bonita, se tiver uma beleza que ultrapasse em muito a habitual e sedutora frescura das adolescentes, então produz um efeito sobrenatural e parece invariavelmente transportar consigo um destino trágico. Com quinze anos, Annabelle fazia parte dessas raparigas à passagem de quem todos os homens, sem distinção de idade ou estado, ficam parados; dessas raparigas cuja simples passagem numa rua movimentada de uma cidade de tamanho médio faz acelerar o ritmo cardíaco dos rapazes e dos homens maduros e arranca suspiros de mágoa aos velhos. Ela deu-se rapidamente conta do rasto de silêncio que ficava na sua passagem, ao entrar num café ou na sala de aulas, mas foram precisos anos para compreender perfeitamente qual era a causa. No colégio de Crécy-en-Brie, era tácito que ela «andava com» o Michel, mas mesmo que não o soubessem, nenhum rapaz teria tido atrevimento para se meter com ela. Este é um dos principais inconvenientes de ser extremamente bela: só os engatatões inveterados, cínicos e sem escrúpulos é que sentem capazes do esforço de aproximação. São, em regra, os homens mais crápulas quem se apodera do tesouro que constituem essas virgindades, o que só pode constituir para elas o primeiro degrau de uma queda irremediável."

Michel Houellebecq, "As partículas elementares" 

terça-feira, 20 de março de 2012

"Acordo, mas não abro logo os olhos, a demorar a surpresa, o encanto, a dizer-me que não é miragem, é verdade, é dela o corpo encostado ao meu. Macio, jovem, firme.
Corro os dedos pela seda do seu cabelo e devagarinho, procurando, desenho-lhe com eles a fronte, as sobrancelhas, a face, toco-lhe o pescoço, faço-os parar na curva do ombro. Espalmo-os no começo do seio, sentindo-lhe o pulsar.
Relembro a noite e tão intensa é a minha felicidade que, a saboreá-la e para melhor me encher dela, primeiro finjo que não acredito, digo-me que foi sonho.
Espreito. Continua a dormir. Não resisto à tentação do vício antigo e, guloso da sua beleza, levanto a roupa, fico-me a admirá-la num arroubo que soma os desejos da vida inteira. Mas cubro-a ao ver que treme num arrepio e passo o braço sob o seu pescoço, dou-lhe o meu calor.
Com uma ternura que nunca antes conheci beijo-lhe ao de leve os cabelos e a fronte, a face. Saciado de corpo e alma, afagado pela memória da noite, prendo a sua mão na minha e volto a adormecer."

J. Rentes de Carvalho, "A Amante Holandesa"

segunda-feira, 19 de março de 2012

"Toda a gente saberia o que se passara comigo, como é óbvio. A doutora Nolan dissera-me, sem quaisquer cerimónias, que algumas pessoas falariam comigo mantendo uma certa distância, ou evitar-me-iam, como se eu fosse uma leprosa com o seu sino. O rosto da minha mãe vinha-me à ideia flutuando como uma lua pálida e acusadora, durante a sua última visita à clínica após o aniversário dos meus vinte anos. Uma filha numa clínica para doentes mentais! O que eu lhe fizera! Apesar de tudo, ela decidira perdoar-me.
«Reiniciaremos tudo do ponto em que partiste, Esther», dissera, com um sorriso doce, de mártir. «Procederemos como se tudo tivesse sido apenas um sonho mau».
Um sonho mau.
Para a pessoa dentro da campânula, vazia e imóvel como um bebé morto, o próprio mundo não passa de um sonho mau.
Um sonho mau.
Lembrava-me de tudo.
Lembrava-me dos cadáveres, de Doreen, da história da figueira, do diamante de Marco, do marinheiro, da enfermeira de olhar austero, do doutor Gordon, dos termómetros partidos, do negro com os dois tipos de feijões, dos quilos que aumentara por causa da insulina, do rochedo pairando entre o céu e o mar como uma caveira cinzenta.
Talvez o esquecimento, como se fosse uma espécie de neve, viesse e os cobrisse.
Mas eles faziam parte de mim. Eram a minha paisagem."

Sylvia Plath, "A campânula de vidro"

sábado, 17 de março de 2012

"Na ponta de cada ramo, qual figo viçoso e suculento, acenava um futuro maravilhoso que me piscava também o olho. Um figo era um marido, um lar feliz e crianças, outro um famoso poeta, outro um professor brilhante, outro Ee Gee, o brilhante redactor, outro a Europa, a África e a América do Sul, outro Constantin e Sócrates e Átila e mais uma série de namorados com nomes esquisitos e profissões estranhas, outro uma campeã olímpica, e todos estes figos estavam ainda rodeados por outros que não consegui identificar.
Vi-me a mim própria sentada à beira da figueira cheia de fome porque não conseguia escolher entre tantos figos. Queria-os a todos, mas escolher um significava perder os outros. Assim, enquanto permanecia sem saber o que fazer, os figos murchavam e caíam, um após outro, a meus pés."

Sylvia Plath, "A campânula de vidro"

quinta-feira, 15 de março de 2012

"Mesmo que se engane, o desenvolvimento natural da sua vida interior conduzi-lo-á lentamente, com o tempo, a um outro estado de conhecimento. Deixe que os seus juízos tenham a sua evolução natural, silenciosa. Não contrarie esta evolução que, com todo o aperfeiçoamento, deve vir do mais profundo do seu ser e não pode suportar coacções nem pressas. «Levar a termo e dar à luz» - eis tudo. É preciso deixar cada impressão, cada gérmen de sentimento amadurecer em si, no obscuro, no inexprimível, no inconsciente - essas regiões fechadas ao entendimento. Espere com humildade e paciência a alvorada de uma nova claridade. Aos simples fiéis a Arte exige tanto como aos criadores.
O tempo, neste caso, não é uma medida. Um ano não conta, dez anos não são nada. Ser artista é não contar, é crescer como a árvore que não apressa a sua seiva, que resiste, sem temer que o Verão possa não vir. O Verão vem. Mas só vem para aqueles que sabem esperar, tão calmos como se tivessem na frente a eternidade. Aprendo-o todos os dias à custa de sofrimentos que bendigo: a paciência é tudo."

Rainer Maria Rilke, "Cartas a um jovem poeta"

domingo, 11 de março de 2012

" Senti a sua testa deslizar pelo meu ombro num sinal de denegação.
- Isaías ainda não nasceu, David. Basta-me vê-lo e ouvi-lo para saber que me é impossível amá-lo e muito menos deitar-me na sua cama.
Eu já não conseguia proferir uma palavra e mal conseguia respirar. As palavras de Eva abatiam-se sobre o meu coração como granizo. Tinha de me conter para não a abraçar, apertar contra mim e beijar-lhe os lábios, gritando que tinha razão. Que o seu pai e Jacob tinham pecado, que eu tinha pecado com eles e até, à minha maneira, mais do que eles.
Forcei-me, pelo contrário, a pensar no caos que se precipitava na nossa direcção como a pedra de uma fisga. Obriguei-me a mentir a mim próprio. A acreditar que não havia outra saída senão essa promessa.
Porém, Eva era feita de intransigência e de juventude. Nem uma parcela da sua alma se deixaria corromper pela mentira.
- Tudo o que não posso fazer com Isaías fá-lo-ia contigo, chorando de alegria, David. Tu sabes. Cheguei a sonhar que terias coragem para isso. Mas sei bem que não.
- Eva, não deves...
Tapou-me a boca com os dedos.
- Sei tudo o que podes dizer. Sei tudo o que pensas. E não te quero mal por isso. É assim. não te peço mais nada a não ser que não deixes de me amar. E quando eles se atirarem contra mim, deves continuar a amar-me.
Não tive tempo para protestar. Os seus lábios substituíram os seus dedos. Um beijo que, num abrir e fechar de olhos, me fez acreditar que o universo era ainda mais vasto do que concluira aquando das minhas viagens.
Depois Eva desapareceu na noite. As rãs deixaram bruscamente de cantar. Tantos séculos depois, ainda ouço cada um dos seus passos. Durante um momento, foi estranho. Parecia que ela ia desaparecer por entre o brilho das estrelas e que eu devia correr atrás dela."

Marek Halter, "O Cabalista de Praga"

terça-feira, 6 de março de 2012

"Existem, para qualquer ser humano, palavras que lhe são mais íntimas e queridas do que todas as outras. E então, muitas vezes, encontramos inesperadamente num recanto perdido, no deserto dos desertos, uma pessoa que nos fala ao coração, que nos faz esquecer o caminho inclemente e as pousadas inóspitas, e nos faz esquecer o desvirtuado barulho moderno, e as mentiras desavergonhadas que nos lançam na confusão. E para sempre se grava na nossa memória uma conversa assim, nocturna, e a nossa fiel memória tudo guardará: quem estava presente, onde estava sentado, o que tinha nas mãos, as paredes, os cantos, a mais pequena bugiganga."

Nikolai Gógol, "Almas Mortas"


(Tive vontade de transcrever, para aqui, o livro todo mas depois pensei que talvez não fosse uma boa ideia)

domingo, 4 de março de 2012

"Daisy há-de ter ficado aquém do sonho - não por culpa dela, mas devido à colossal vitalidade da própria ilusão. Tudo a tinha ultrapassado, ultrapassado tudo. O Gatsby precipitara-se todo inteiro naquele sonho, com toda a sua paixão criadora, acrescentando-o hora a hora, ornando-o de todas as plumas e pedrarias de cor que de caminho lhe surgiam. Não há fogo nem refrigério, por grandes que sejam, que possam aceitar o repto de todos os fantasmas ocultos no coração do homem."

"O Gatsby acreditara na luz verde, no orgíaco futuro que, ano após ano, foge e recua diante nós. Se hoje nos iludiu, pouco importa: amanhã correremos mais depressa, alongaremos mais os braços... Até que uma bela manhã...
Assim vamos teimando, proas contra a corrente, incessantemente cortando as águas, a caminho do passado que não volta."

F. Scott Fitzgerald, "O Grande Gatsby"