domingo, 21 de outubro de 2012

"Aprenda a usar o tempo nos aspectos práticos da sua vida - o tempo no sentido cronológico -, mas regresse imediatamente à tomada de consciência do momento presente assim que esses aspectos práticos tiverem sido tratados. Dessa maneira, não haverá acumulação de "tempo psicológico", que consiste na identificação com o passado e na projecção compulsiva contínua do futuro.
O tempo cronológico não serve apenas para marcar uma reunião ou planear uma viagem. Inclui igualmente aprender com o passado, se não quisermos repetir os mesmos erros vezes sem conta. Estabelecer objectivos e trabalhar para os alcançar. Prever o futuro por meio de padrões e de leis (físicas, matemáticas e outras) aprendidas no passado, e tomar as medidas apropriadas com base nas nossas previsões.
Mas mesmo neste caso, na esfera da vida prática, em que não podemos passar sem o passado nem o futuro, o momento presente continua a ser o factor essencial: qualquer ligação do passado torna-se relevante e é aplicada agora. Qualquer planeamento, assim como trabalhar para alcançar determinada meta são feitos agora."

Eckhart Tolle, "O Poder do Agora"

sábado, 20 de outubro de 2012

"O tema da manhã era precisamente uma investigação pessoal. Armanskij endireitou o vinco das calças antes de se recostar na sua confortável cadeira. Olhou desconfiado para a sua colaboradora Lisbeth Salander, trinta e dois anos mais nova que ele. Penso, pela milésima, vez, que ninguém parecia mais deslocado do que ela numa prestigiada empresa de segurança. Era uma desconfiança simultaneamente pensada e irracional. Considerava-a, sem qualquer margem para dúvida, a investigadora mais competente que conhecera desde que estava naquele negócio. Durante os quatro anos que trabalhara para ele, nunca, nem uma única vez, falhara uma missão ou apresentara um relatório medíocre.

Pelo contrário, os relatórios dela situavam-se numa categoria à parte. Armanskij estava convencido de que a rapariga possuía um dom único. Qualquer pessoa era capaz de obter informações de crédito ou consultar os registos da polícia. Mas Salander tinha imaginação, e aparecia sempre com qualquer coisa diferente do que se esperava. Como o fazia, era algo que nunca conseguira compreender. Por vezes, pensava que a habilidade dela para recolher informações era pura magia. Conhecia os arquivos burocráticos por dentro e por fora. Acima de tudo, tinha a capacidade de pôr-se na pele da pessoa que estivesse a investigar. Se havia lixo a desenterrar, ia direita a ele como um míssil de cruzeiro.

Sim, tinha sem dúvida o dom. 

Os relatórios dela podiam ser catastróficos para o indivíduo que tivesse tido a pouca sorte de ser apanhado pelo seu radar. Armanskji nunca esqueceria aquela vez em que lhe atribuíra uma investigação de rotina sobre um técnico da indústria farmacêutica, antes da realização de uma fusão entre empresas. O trabalho deveria ficar concluído numa semana, mas fora-se arrastando. Ao cabo de quatro semanas de silêncio e várias chamadas de atenção, que ela ignorara, Salander apresentara um relatório em que documentava que o indivíduo em questão era um pedófilo. (...)
Salander tinha hábitos que frequentemente levavam Armanskij à beira do desespero. No caso do pedófilo, não pegara no telefone para falar com ele, nem o procurara no gabinete para uma conversa particular. Não, sem dar a entender por uma palavra que fosse que o relatório poderia conter material explosivo, pusera-lho em cima da secretária certa tarde, precisamente quando ele se preparava para sair.  (...)

O relatório era, como sempre, cientificamente preciso, com notas de rodapé, citações e referências às fontes. As primeiras páginas expunham os antecedentes, habilitações académicas, carreira profissional e situação financeira do investigado. Na página 24, Salander largava a bomba (...). 

O relatório criara precisamente o tipo de caos que Armanskij pretendia evitar. Primeiro, engolira dois dos comprimidos que o médico lhe receitara para a úlcera. Em seguida, telefonara ao cliente para marcar uma sombria reunião de emergência. Finalmente - apesar da veemente oposição do cliente - fora obrigado a entregar o material à polícia. O que significava que a Milton Security corria o risco de ver-se arrastada para uma emaranhada teia legal. Se as provas de Salander não pudessem ser comprovadas ou se o homem fosse ilibado, a empresa arriscava um processo de difamação. Um autêntico pesadelo.

Não era, no entanto, a desconcertante ausência de envolvimento emocional de Lisbeth Salander que mais o perturbava. A imagem da Milton era de estabilidade conservadora. Salander encaixava tão bem nesta imagem como um búfalo num concurso de beleza. A investigadora-estrela de Armanskij era uma jovem pálida e anoréctica, de cabelos ultracurtos e que usava piercings no nariz e nas sobrancelhas. Tinha uma vespa com dois centímetros de comprimento tatuada no pescoço, um cordão tatuado á bolta do bíceps do braço esquerdo e outro à volta do tornozelo esquerdo. Nas ocasiões em que usava uma blusa sem mangas, via-se-lhe uma outra tatuagem: um grande dragão, na omoplata direita.  Era uma ruiva natural, mas pintava o cabelo de preto asa de corvo. Parecia acabada de sair de um fim-de-semana de orgia com um bando de motoqueiros da pesada. 

Não sofria, na realidade, de qualquer espécie de desordem alimentar disso tinha Armanskji a certeza. Pelo contrário, parecia alimentar-se de pizza e hamburguers. Pura e simplesmente, nascera magra, com ossos finos que a faziam parecer juvenil e frágil, com mãos pequenas, pulsos estreitos, seios de menina.Tinha 24 anos mas, por vezes, parecia ter 14.

A boca era grande, o nariz pequeno, e as maçãs do rosto, muito altas, davam-lhe um ar quase asiático. Os movimentos eram rápidos e aracnídeos e, quando trabalhava no computador, os dedos dela voavam sobre o teclado. A magreza extrema teria tornado impossível uma carreira como modelo, mas, com a maquiagem certa, o rosto não destoaria num cartaz em qualquer parte do mundo. Por vezes, usava batôn preto, e apesar das tatuagens e dos piercings, era... bem... atraente. De uma maneira totalmente incompreensível.

O facto de trabalhar para Armanskij era em si mesmo espantoso. Não era nada o género de mulher com quem ele entraria em contacto.

Fora contratada como uma espécie de faz-tudo. (...)

Lamentara a decisão de contratar a rapariga no instante em que a vira. Não parecia apenas perturbada - aos olhos dele, era a quintessência da perturbação. Abandonara os estudos e não tinha qualquer espécie de educação superior.

Nos primeiros meses, Lisbeth trabalhara a tempo inteiro. Bem, quase a tempo inteiro. Aparecia no escritório de vez em quando. Fazia café, ia aos correios e encarregava-se das fotocópias, mas horários de trabalho convencionais e rotinas de serviço eram anátema para ela. Por outro lado, tinha um talento especial para irritar os outros empregados. Passara a ser conhecida como " a rapariga que tinha dois neurónios" - um para respirar e outro para manter-se em pé. Nunca falava a respeito de si mesma. Os colegas que tentavam meter conversa raramente obtinham respostas e não tardavam a desistir. A atitude dela não encorajava a confiança nem a amizade, e depressa se tornou uma estranha que andava pelos corredores da Milton como um gato vadio. Era, de um modo geral, considerada um caso perdido. 

Ao cabo de um mês de problemas constantes, Armanskij mandara-a chamar, disposto a desembaraçar-se dela. Lisbeth ouvira-o desfiar o catálogo dos crimes que cometera sem uma objecção sequer erguer uma sobrancelha. Não tinha a "atitude certa", concluíra ele, e preparava-se para lhe dizer que provavelmente seria boa ideia procurar emprego noutra empersa que pudesse fazer melhor uso das suas competências quando, finalmente ela o interrompera.

- Se o que procura é um lacaio para o escritório, a agência de emprego temporário arranja-lhe montes deles. Mas eu sou capaz de lidar com qualquer trabalho que me confie, e se não tem nada melhor em que utilizar os meus serviços do nque a distribuir correio, é porque é um idiota.

Armanskij ficara a olhar de boca aberta, aturdido e furioso, e ela prosseguira, impávida. (...)"

Stieg Larsson, Os Homens que Odeiam as Mulheres (The Girl With The Dragon Tatoo)

terça-feira, 16 de outubro de 2012

"- Posso falar? Podemos falar?
O meu único alimento é o desespero. E é do coração que extraio toda a força: tenho confiança em que Deus está neste quarto, está na tão experiente expectativa das tumultuosas passagens dos comboios.
O pensamento alude ao norte, a essa ideia que relaciona o norte com o frio puro e a dramática alegria da neve, das temperaturas muito baixas. Alude também à viagem sem fé, inconsequente, feita com o inexplicável ardor de quem se inicia na eternidade.
Mas nem cigarros tenho. Estou possuído pelos dons infernais com que se cria um estilo sem tempo nem lugar, a fraternidade solitária, o amor sempre em viagem.
O meu gosto pela exactidão já sabe o horário dos comboios que possivelmente (evidentemente) nem vão para lá.
Deus principia a inspirar-me terror. A minha unidade, sobretudo. A unidade fechada e imóvel. O universo passa bem sem mim, e o terror é uma inspiração sem mácula, dentro do que se pode alcançar.
Não, não está ninguém junto à porta."

Herberto Helder, Os passos em volta