quinta-feira, 29 de novembro de 2012

"O estar-fora-do-tempo, disse Austerlitz, que ainda há pouco vigorava tanto nas regiões atrasadas e esquecidas do nosso país como nos continentes por descobrir além-mar, continua a vigorar mesmo numa metrópole temporal, como Londres. Os mortos estão fora do tempo, os moribundos e todos os doentes, em casa ou nos hospitais, e não apenas estes, basta um tanto de infelicidade pessoal para nos separar do passado e do futuro. Na verdade, disse Austerlitz, nunca possuí qualquer relógio, de parede ou despertador, de bolso e muito menos de pulso. Os relógios sempre me deram vontade de rir, coisa basicamente mentirosa, talvez porque sempre resisti ao poder do tempo graças a um impulso interior que eu próprio não entendo muito bem, sempre me fechei à chamada actualidade, na esperança, penso eu hoje, disse Austerlitz, de que o tempo não passe, não seja passado, de poder ir atrás dele, de encontrar à chegada tudo como dantes, ou, melhor dizendo, de descobrir que todos os momentos do tempo existiram simultaneamente, caso em que nada do que a história conta seria verdade, os acontecimentos não aconteceram, estão à espera de acontecer no momento em que pensarmos neles, embora, naturalmente, a perspectiva pouco animadora de eterna infelicidade e interminável dor fique assim em aberto."

W. G. Sebald, Austerlitz

domingo, 25 de novembro de 2012

"Aquela satisfação, aquele espanto, que se opunham, opunham-se completamente, ao aborrecimento, muitas vezes apenas são experimentados depois das pessoas envolvidas terem passado por situações em que tiveram medo e sofreram perdas. No entanto, quanto a mim, depois de se ter contacto com estas sensações, dificilmente elas serão esquecidas; são como relâmpagos e jorros de uma luz paradisíaca a incidir sobre locais e momentos únicos.
Os aldeões reconstruiram a aldeia, e os objectos que tinham sido salvos, na casa que se tinha salvo, ficaram entre novas casas em cujos jardins novas flores e vegetais germinaram, e novos espécimes foram plantados. O povo começou a contar histórias sobre a vinda dos vermes, montanha abaixo, e também essas histórias eram o oposto do aborrecimento. Tornaram interessantes, excitantes, quase belos, a cinza e o fedor, o esmagar e engolir. As lendas falavam de algumas coisas mas calavam outras. Jack contava a bravura impetuosa de Harry, correndo em direcção ao mar de fumo para salvar o seu porco, mas ninguém falava da tristeza diária provocada pela esperança no seu regresso, que diminuia lentamente. Enalteceu-se o facto de o porco ter tido muita destreza e ter-se conseguido recompor mas não se falou dos maus bocados por que ele teve de passar, naqueles dias tão duros. E estas lendas, construídas a partir do contentamento daquelas pessoas perante a sua própria sobrevivência tornaram-se, com o tempo para os seus filhos e netos, armas contra o aborrecimento e a monotonia estabelecendo uma ligação misteriosa entre a paz, a beleza e o terror."

A. S. Byatt, O caixão de vidro

domingo, 18 de novembro de 2012

"- Os meus amores de um instante valem por amores de um século. Mas, por felicidade, ninguém me segue e eu não tenho tempo de criar essa habilidade a partir da qual se engendra o ciúme. Isso, ria-se! Não tema o devir nem a morte. Nunca se tem a certeza de morrer. Julga então que eu sou o único que não morreu! Lembre-se de Enoch, de Elias, de Empedócles, de Apolónio de Tirana. Será que já ninguém neste mundo acredita que Napoleão continua vivo? E esse desafortunado rei da Baviera, Luís II? Pergunte aos bávaros. Todos afirmarão que o seu rei magnífico e louco vive ainda. Você, você mesmo, não morrerá talvez."

Guillaume Apollinaire, O Heresiarca e C.ª

sábado, 17 de novembro de 2012

"Mas no seu coração acendia-se novo inferno: o mais terrível de todos, aquele onde as serpentes mordem o próprio coração com os dentes aguçados, nele infiltrando a peçonha mais corrosiva: o inferno do ciúme.
Ao ver Anhelete tão fresca e gentil, tão inocentemente feliz, ao vê-la no momento exacto em que ela ia passar a ser pertença de outro, Teobaldo, que havia três meses não pensava sequer nela, que não tinha intenção de cumprir a promessa que lhe fizera, Teobaldo convenceu-se de que nunca deixara de a amar.
Afigurou-se-lhe que Anhelete lhe havia jurado fidelidade ou que Engoulevent lhe estava a arrebatar o que era propriedade sua.
Quase saltou para fora do esconderijo, censurando à jovem a sua traição.
Anhelete, agora que se lhe esquivava, adquiria aos olhos de Teobaldo virtudes, qualidades, vantagens que ele não tinha suspeitado no momento em que, para as possuir, lhe teria bastado uma palavra.
Depois de ter experimentado todas as decepções que tinha experimentado, depois de perder aquilo que ele considerava o seu tesouro, aquilo de que a qualquer momento se poderia apoderar, pois não lhe passava pela cabeça que outro lho pudesse cobiçar, pareceu-lhe a última das partidas do destino.
Por ser mudo, o seu  desespero não foi mais profundamente triste: mordia as mãos, batia com a cabeça no tronco da árvore. Chorava e soluçava.
Mas tais lágrimas e suspiros não eram daqueles que, enternecendo o coração, servem de transição entre um mau sentimento e um bom: não, tais lágrimas e suspiros, então mais inspirados pela fúria e pela raiva que pelo o arrependimento, tais lágrimas e suspiros não lograram expulsar o ódio da alma de Teobaldo.
Até parecia que uma parte das lágrimas se derramava para fora, enquanto outra parte escorria para dentro, caindo-lhe sobre o coração como outras tantas gotas de fel.
Convencera-se de que adorava Anhelete."

Alexandre Dumas, O Lobisomem

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

"Movemo-nos entre generalidades e símbolos, como num campo fechado onde a nossa força se mede utilmente com outras forças; e fascinados pela acção, atraídos por ela, para nosso bem, no terreno que ela escolheu, vivemos numa zona intermédia entre as coisas e nós próprios, exteriormente em relação às coisas, exteriormente em relação a nós próprios. Mas de tempos a tempos, por distracção, a natureza suscita almas mais desligadas da vida. Não falo desse desprendimento deliberado, pensado, sistemático, que é a obra de reflexão e da filosofia. Falo de um desprendimento natural, inato na estrutura do sentido ou da consciência, e que se manifesta sobretudo por uma maneira, de certo modo virginal, de ver, de ouvir ou de pensar. Se tal desprendimento fosse completo, se a alma já não aderisse à acção por nenhuma das suas percepções, seria a alma de um artista como nunca ainda o mundo viu. (...) A sinceridade é comunicativa. O que o artista viu, não voltaremos a vê-lo, sem dúvida, pelo menos completamente tal qual foi: mas se ele o viu deveras, o esforço que fez para afastar o véu impõe-se à nossa imitação. A sua obra é um exemplo que nos serve de lição. E a verdade da obra mede-se precisamente pela eficácia da lição. A verdade traz pois consigo uma força de convicção, de conversão até, que é a marca pela qual a reconhecemos. Quanto maior for a obra e mais profunda a verdade entrevista, mais o efeito se poderá fazer esperar, mas também mais tenderá, esse mesmo efeito a tornar-se universal. A universalidade encontra-se aqui no efeito produzido, e não na causa. O objectivo da comédia é completamente diferente. Nele a generalidade reside na própria obra. A comédia retrata caracteres que encontrámos já e que voltaremos a encontrar, no nosso caminho. Regista semelhanças. Visa mostrar-nos tipos. Se necessário, chegará mesmo a criar tipos novos. E por este aspecto distingue-se das outras artes."

Henri Bergson, O Riso

domingo, 21 de outubro de 2012

"Aprenda a usar o tempo nos aspectos práticos da sua vida - o tempo no sentido cronológico -, mas regresse imediatamente à tomada de consciência do momento presente assim que esses aspectos práticos tiverem sido tratados. Dessa maneira, não haverá acumulação de "tempo psicológico", que consiste na identificação com o passado e na projecção compulsiva contínua do futuro.
O tempo cronológico não serve apenas para marcar uma reunião ou planear uma viagem. Inclui igualmente aprender com o passado, se não quisermos repetir os mesmos erros vezes sem conta. Estabelecer objectivos e trabalhar para os alcançar. Prever o futuro por meio de padrões e de leis (físicas, matemáticas e outras) aprendidas no passado, e tomar as medidas apropriadas com base nas nossas previsões.
Mas mesmo neste caso, na esfera da vida prática, em que não podemos passar sem o passado nem o futuro, o momento presente continua a ser o factor essencial: qualquer ligação do passado torna-se relevante e é aplicada agora. Qualquer planeamento, assim como trabalhar para alcançar determinada meta são feitos agora."

Eckhart Tolle, "O Poder do Agora"

sábado, 20 de outubro de 2012

"O tema da manhã era precisamente uma investigação pessoal. Armanskij endireitou o vinco das calças antes de se recostar na sua confortável cadeira. Olhou desconfiado para a sua colaboradora Lisbeth Salander, trinta e dois anos mais nova que ele. Penso, pela milésima, vez, que ninguém parecia mais deslocado do que ela numa prestigiada empresa de segurança. Era uma desconfiança simultaneamente pensada e irracional. Considerava-a, sem qualquer margem para dúvida, a investigadora mais competente que conhecera desde que estava naquele negócio. Durante os quatro anos que trabalhara para ele, nunca, nem uma única vez, falhara uma missão ou apresentara um relatório medíocre.

Pelo contrário, os relatórios dela situavam-se numa categoria à parte. Armanskij estava convencido de que a rapariga possuía um dom único. Qualquer pessoa era capaz de obter informações de crédito ou consultar os registos da polícia. Mas Salander tinha imaginação, e aparecia sempre com qualquer coisa diferente do que se esperava. Como o fazia, era algo que nunca conseguira compreender. Por vezes, pensava que a habilidade dela para recolher informações era pura magia. Conhecia os arquivos burocráticos por dentro e por fora. Acima de tudo, tinha a capacidade de pôr-se na pele da pessoa que estivesse a investigar. Se havia lixo a desenterrar, ia direita a ele como um míssil de cruzeiro.

Sim, tinha sem dúvida o dom. 

Os relatórios dela podiam ser catastróficos para o indivíduo que tivesse tido a pouca sorte de ser apanhado pelo seu radar. Armanskji nunca esqueceria aquela vez em que lhe atribuíra uma investigação de rotina sobre um técnico da indústria farmacêutica, antes da realização de uma fusão entre empresas. O trabalho deveria ficar concluído numa semana, mas fora-se arrastando. Ao cabo de quatro semanas de silêncio e várias chamadas de atenção, que ela ignorara, Salander apresentara um relatório em que documentava que o indivíduo em questão era um pedófilo. (...)
Salander tinha hábitos que frequentemente levavam Armanskij à beira do desespero. No caso do pedófilo, não pegara no telefone para falar com ele, nem o procurara no gabinete para uma conversa particular. Não, sem dar a entender por uma palavra que fosse que o relatório poderia conter material explosivo, pusera-lho em cima da secretária certa tarde, precisamente quando ele se preparava para sair.  (...)

O relatório era, como sempre, cientificamente preciso, com notas de rodapé, citações e referências às fontes. As primeiras páginas expunham os antecedentes, habilitações académicas, carreira profissional e situação financeira do investigado. Na página 24, Salander largava a bomba (...). 

O relatório criara precisamente o tipo de caos que Armanskij pretendia evitar. Primeiro, engolira dois dos comprimidos que o médico lhe receitara para a úlcera. Em seguida, telefonara ao cliente para marcar uma sombria reunião de emergência. Finalmente - apesar da veemente oposição do cliente - fora obrigado a entregar o material à polícia. O que significava que a Milton Security corria o risco de ver-se arrastada para uma emaranhada teia legal. Se as provas de Salander não pudessem ser comprovadas ou se o homem fosse ilibado, a empresa arriscava um processo de difamação. Um autêntico pesadelo.

Não era, no entanto, a desconcertante ausência de envolvimento emocional de Lisbeth Salander que mais o perturbava. A imagem da Milton era de estabilidade conservadora. Salander encaixava tão bem nesta imagem como um búfalo num concurso de beleza. A investigadora-estrela de Armanskij era uma jovem pálida e anoréctica, de cabelos ultracurtos e que usava piercings no nariz e nas sobrancelhas. Tinha uma vespa com dois centímetros de comprimento tatuada no pescoço, um cordão tatuado á bolta do bíceps do braço esquerdo e outro à volta do tornozelo esquerdo. Nas ocasiões em que usava uma blusa sem mangas, via-se-lhe uma outra tatuagem: um grande dragão, na omoplata direita.  Era uma ruiva natural, mas pintava o cabelo de preto asa de corvo. Parecia acabada de sair de um fim-de-semana de orgia com um bando de motoqueiros da pesada. 

Não sofria, na realidade, de qualquer espécie de desordem alimentar disso tinha Armanskji a certeza. Pelo contrário, parecia alimentar-se de pizza e hamburguers. Pura e simplesmente, nascera magra, com ossos finos que a faziam parecer juvenil e frágil, com mãos pequenas, pulsos estreitos, seios de menina.Tinha 24 anos mas, por vezes, parecia ter 14.

A boca era grande, o nariz pequeno, e as maçãs do rosto, muito altas, davam-lhe um ar quase asiático. Os movimentos eram rápidos e aracnídeos e, quando trabalhava no computador, os dedos dela voavam sobre o teclado. A magreza extrema teria tornado impossível uma carreira como modelo, mas, com a maquiagem certa, o rosto não destoaria num cartaz em qualquer parte do mundo. Por vezes, usava batôn preto, e apesar das tatuagens e dos piercings, era... bem... atraente. De uma maneira totalmente incompreensível.

O facto de trabalhar para Armanskij era em si mesmo espantoso. Não era nada o género de mulher com quem ele entraria em contacto.

Fora contratada como uma espécie de faz-tudo. (...)

Lamentara a decisão de contratar a rapariga no instante em que a vira. Não parecia apenas perturbada - aos olhos dele, era a quintessência da perturbação. Abandonara os estudos e não tinha qualquer espécie de educação superior.

Nos primeiros meses, Lisbeth trabalhara a tempo inteiro. Bem, quase a tempo inteiro. Aparecia no escritório de vez em quando. Fazia café, ia aos correios e encarregava-se das fotocópias, mas horários de trabalho convencionais e rotinas de serviço eram anátema para ela. Por outro lado, tinha um talento especial para irritar os outros empregados. Passara a ser conhecida como " a rapariga que tinha dois neurónios" - um para respirar e outro para manter-se em pé. Nunca falava a respeito de si mesma. Os colegas que tentavam meter conversa raramente obtinham respostas e não tardavam a desistir. A atitude dela não encorajava a confiança nem a amizade, e depressa se tornou uma estranha que andava pelos corredores da Milton como um gato vadio. Era, de um modo geral, considerada um caso perdido. 

Ao cabo de um mês de problemas constantes, Armanskij mandara-a chamar, disposto a desembaraçar-se dela. Lisbeth ouvira-o desfiar o catálogo dos crimes que cometera sem uma objecção sequer erguer uma sobrancelha. Não tinha a "atitude certa", concluíra ele, e preparava-se para lhe dizer que provavelmente seria boa ideia procurar emprego noutra empersa que pudesse fazer melhor uso das suas competências quando, finalmente ela o interrompera.

- Se o que procura é um lacaio para o escritório, a agência de emprego temporário arranja-lhe montes deles. Mas eu sou capaz de lidar com qualquer trabalho que me confie, e se não tem nada melhor em que utilizar os meus serviços do nque a distribuir correio, é porque é um idiota.

Armanskij ficara a olhar de boca aberta, aturdido e furioso, e ela prosseguira, impávida. (...)"

Stieg Larsson, Os Homens que Odeiam as Mulheres (The Girl With The Dragon Tatoo)

terça-feira, 16 de outubro de 2012

"- Posso falar? Podemos falar?
O meu único alimento é o desespero. E é do coração que extraio toda a força: tenho confiança em que Deus está neste quarto, está na tão experiente expectativa das tumultuosas passagens dos comboios.
O pensamento alude ao norte, a essa ideia que relaciona o norte com o frio puro e a dramática alegria da neve, das temperaturas muito baixas. Alude também à viagem sem fé, inconsequente, feita com o inexplicável ardor de quem se inicia na eternidade.
Mas nem cigarros tenho. Estou possuído pelos dons infernais com que se cria um estilo sem tempo nem lugar, a fraternidade solitária, o amor sempre em viagem.
O meu gosto pela exactidão já sabe o horário dos comboios que possivelmente (evidentemente) nem vão para lá.
Deus principia a inspirar-me terror. A minha unidade, sobretudo. A unidade fechada e imóvel. O universo passa bem sem mim, e o terror é uma inspiração sem mácula, dentro do que se pode alcançar.
Não, não está ninguém junto à porta."

Herberto Helder, Os passos em volta

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

"«Se eu cometo uma vileza de cumplicidade com alguém, o meu cúmplice está automaticamente autorizado a revertê-la para mim.
Castigar uma traição?! Mas se nem sequer chegou a haver infidelidade... Nós só somos fiéis aos próprios sentimentos.
Se eu não atraiçoo A, não é porque ele me ame, mas porque eu o amo a ele. Traí-lo seria atraiçoar os meus sentimentos, conspurcá-los, deixá-los em carne viva. Se eu não começar por ser fiel a mim próprio, nunca acabarei por sê-lo a A.
De resto, o amor que nós temos aos outros, antes de ser já existia dentro de nós. Amámo-lo sempre através de nós próprios, das nossas reacções. Os outros são o zenite "para onde" e não "de onde" convergem as nossas emoções.
Se eu me apaixono violentamente por A é porque ele me impressionou e não porque eu o impressionei a ele. Ele veio de certo modo preencher o vácuo de forma a não deixar o menor espaço vazio.»
Apunhalar o nosso amor é fazer sangrar essa força presente e sempre viva dentro de nós.
Não havia traição, portanto. Ele faria o mesmo..."

Natália Correia, anoiteceu no bairro

sábado, 15 de setembro de 2012

"Ola Joaninha,

Sorry em antemão


Mas eu não sei como lidar com isto.não controlo as emoções.tanto estou calmo como estou ansioso e nervoso.não aguento isto.cada vez que te vejo apaixono-me vezes sem conta. Não consigo viver bem, e nunca pedi isto para mim. Será preciso sofrer desta maneira para saber o que é amar? dass esta merda dói milhões. O meu coração dispara de uma maneira que me corta a respiração sempre que te vejo. Pareço bipolar, tanto estou bem, como estou na merda. Tenho a mesma conversa vezes sem conta com os meus amigos ao ponto de eu já me sentir mal porque pareço um disco riscado e não tenho de encher a cabeça deles com os meus problemas sempre á espera que alguém tenha a solução. Não consigo estar com ninguém para me ajudar a esquecer-te (o que é horrível e muito baixo nível) mas não consigo.não tenho vontade de estar com ninguém.
Gostava de ser forte e frio e seguir facilmente em frente, mas sou um coração de manteiga e não consigo pensar em mais nada, sem me deixar levar pelas emoções. Demorei 29 anos a encontrar-te, entraste na minha vida, deitaste-te na minha cama, apaixonei-me como nunca e depois deixei chegar ao ponto de me destruíres o coração. Sinto-me injustiçado, triste e sem motivação para nada.
Já cheguei ao ridículo de ir numa noite a 3 discotecas só para ver se te via (ainda bem que não te vi) só me serviu de lição. O meu chefe obrigou-me a tirar ferias porque diz que ando todo queimado da cabeça.

Eu sei que  me evitas e fazes de tudo para não me dares esperança e também sei que não te posso obrigar a gostares de mim.mas tu também não me podes obrigar a que este sentimento desapareça..bem que eu gostava de não estar assim.mas se estou e nunca na vida estive desta forma, algum significado tem. Como posso eu deixar fugir quem me faz sentir desta maneira.quem me tira a sanidade mental, quem me tira a orientação.sinto-me perdido e por um lado tu nem culpa tens porque segues o que o teu coração te diz.mas chiça somos assim tão diferentes? Serei assim tao nórdico (quando te tratava como uma rainha) que não valho um esforço, um mínimo de luta da tua parte sem teres o pé atras? As pessoas moldam-se e adaptam-se (não mudam) mas quando gostam fazem para que as coisas resultem. Fiz-te assim tao infeliz? Será que não há mesmo combinação possível entre nos e não há mais nenhuma oportunidade? E porque procuras tanto um sentimento que já tiveste.quando as pessoas são tds diferentes? Não te estarás a proteger de alguma coisa e tens medo de arriscar e por isso não te entregas? Pensei sempre que te deixava confortável.

Já me perguntei varias vezes o porque.e até já me passou pela cabeça que fizeste de propósito para me proteger de alguma coisa. Já pensei que se calhar não podes ter filhos e por isso preferiste assim para não me magoares.ou então devido á diferença de idades que eu poderia deixar de gostar dentro de uns anos. Ou então também já pensei que me vês como uma pessoa que a nível financeiro não preencho aquilo que pretendes na vida (desculpa mas pareço uma gaja a pensar) ou se havia outra pessoa... Tivemos 6 meses lindos e depois de Abril para cá tem sido sofrer e não viver. Mudou assim tanta coisa de repente? Que fiz eu para deixares de gostar?

E para não deixar de falar neste jogo estupido do tentar ser forte e tentar sair da tua vida sem te dizer nada de forma a que voltes a ter saudades minhas. Pq o "procedimento" é este.não dizer nada, e fazer com que tenhas saudades e fazer sentir com que me perdeste para voltares a dizer.eu detesto isto!!!!!! Não consigo!!!! Eu quero fazer-te feliz.quero estar bem na vida e neste momento só tu me fazes sentido. Ah e tal só o tempo ajuda..dasss ate agora não tem ajudado nada! E a ti não te custa? estas a fazer um esforço enorme? E se estas, pq?

E depois não percebo a tua dificuldade de te expressares pois as nossas conversas eram quase sempre monólogos e tu nunca dizias as coisas que pensavas.porque? O que é que te custa? Magoares a outra pessoa? Não sabes exprimir-te? As vezes ficava maluco porque pensava que na tua cabeça iam mil coisas e nada saía da tua boca.era horrível a sensação e de uma impotência gigante. Por mensagem lá mandavas umas respostas mas presencialmente eras um terror.

Desculpa tudo isto e apesar de quando clicar em "send" o meu coração disparar, estou a sentir-me bem a escrever. Mas a verdade é que tu és linda de morrer e eu adoraria continuar a amar-te e fazer de tudo para que sejas feliz e estar ao teu lado em todos os momentos, maus, menos bons, razoáveis, felizes e lindos e fazer conchinha tds as noites, e cozinhar para ti, ir ao ginásio ctg, fazer maluqueiras ctg, viajar ctg, fazer planos a dois e rirmo-nos muito, adormecer no teu sofá ctg ao lado e a tv ligada e aquela manta de ovelha em cima, acordar-te de manha para irmos trabalhar, rir-me quando poes a britney spears no radio e ver a tua cara de felicidade com a capota aberta e o teu cabelo a voar, ver-te a vestir de manha naquele quarto todo desarrumado e tu a deslumbrares. AMAR-TE e fazer-te FELIZ.

Sei que pareço que estou a rastejar.e também sei que só te afasto mais com isto.mas tinha de dizer e tentar nem que a pancada seja maior.

Só tenho um pedido a fazer-te! Não me respondas a isto nem por email nem por mensagem POR FAVOR!!! Um dia se sentires necessidade de me dizeres alguma coisa saberás onde me encontrar. Mas POR FAVOR não respondas por email ou por mensagem. Eu sei que é injusto mas é o meu único pedido e agradecia que respeitasses.

Bem, nunca fui muito bom a escrever mas acho que que me consegui expressar razoavelmente.

Beijos meu tesouro e que sejas feliz, seja comigo ou com outra pessoa!!!!"

                                                                                                                                             João Barciela

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

"Tive a fraqueza de a acreditar. Como já disse, a vaidade é uma ave de rapina cuja envergadura de asas basta para obscurecer totalmente a razão."

Marek Halter, "O Cabalista de Praga"

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

"Se tivesse suspeitado de que, um dia, cairia vítima do seu próprio saber, nunca teria escolhido essa terrível profissão; se fosse um simples funcionário virtuoso ou um artesão com sentido artístico, teria levado uma vida decente, sem a necessidade de fugir de si próprio. O filósofo Sócrates errara - e não devia ter sido a primeira vez - ao dizer que o saber é o único bem da humanidade e a ignorância o único mal. A ignorância pode significar uma grande fortuna e o saber uma ignorância atroz, havendo disso incontáveis exemplos. E, em geral, não se tem má intenção quando se diz que os ignorantes são os mais felizes: é que são mesmo. A sua vida é um paraíso e o seu ganha-pão não é afectado por nenhum matagal de dúvidas, que possa ficar impenetrável ao  seu saber, porque o saber não é senão uma forma, sempre repetida, de dúvida."

Philipp Vandenberg, "O Quinto Evangelho"

sábado, 14 de julho de 2012

Há pouco, em conversa com uma amiga: Ele que fique com uma mulher que seja como ele acha que são as mulheres.

terça-feira, 10 de julho de 2012

"Às vezes penso: este povo é bem intencionado, mas ignorante; procederia melhor se soubesse como proceder; porque hei-de eu sujeitar os meus vizinhos ao incómodo de me tratarem diferentemente do que é sua intenção? Mas depois penso: não há motivos para eu proceder como eles procedem ou para consentir que outros sofram tormentos maiores, se bem que de outra espécie. E digo também muitas vezes de mim para mim: quando muitos milhões de homens, sem violência, sem má vontade, sem qualquer proveito pessoal, te pedem uns escassos xelins, sem qualquer possibilidade, nas actuais circunstâncias, de alterarem tal exigência, e sem tu, por teu lado, teres qualquer possibilidade de apelar para outros milhões de homens, de que te serve expores-te à rudeza duma força tão inelutável? Ao frio, à fome, aos ventos e às ondas, nunca opões uma obstinação tão grande; nunca opões resistência a toda uma série de necessidades similares. Não colocas a cabeça em cima de uma fogueira... É que, na medida em que não considero essa força completamente bruta, mas sim parcialmente humana, e porque considero que estou relacionado com esses milhões como estou com muitos outros milhões de homens e não com seres brutos ou inanimados, acredito que lhes resta a possibilidade de requererem o auxílio, primeiramente, com a maior urgência, do Criador, e em segundo lugar, o auxílio dos outros. No caso de eu colocar deliberadamente a cabeça no fogo, não se justifica que depois me queixe do fogo ou de quem o criou; deverei, sim, queixar-me de mim próprio. Se eu estivesse convencido de que tenho o direito de estar satisfeito com os homens, tais como eles são, e de com eles lidar de acordo com esse facto e não de acordo com as minhas exigência ou com a ideia que faço do que eles e eu devemos ser, seria, como os bons muçulmanos e os fatalistas, obrigado a contentar-me com as coisas, tal como elas são, dizendo que Deus assim o quer. E, além do mais, entre resistir a esta e a outra força natural inteiramente bruta, há uma importante diferença: a esta, posso efectivamente opor resistência. Pelo contrário, não me é possível, como a Orfeu, mudar a natureza das pedras, das árvores e dos animais.
Não é meu desejo travar combate com qualquer homem ou nação. Não desejo fazer distinções miudinhas, usar de grande rigor, colocar-me na posição de superior ao meu vizinho. Posso até dizer que faço esforços para me conformar com as leis desta terra."

Henry David Thoreau, "A Desobediência Civil"

quinta-feira, 5 de julho de 2012

"As estradas eram percorridas por loucos do volante, estupidamente orgulhosos da sua condução desportiva e que enchiam cemitérios e unidades de cuidados intensivos com as suas vítimas.
Nas fábricas e nos escritórios, operários e empregados eram obrigados a trabalhar como máquinas e dispensados quando se cansavam. Os patrões exigiam um rendimento permanente, humilhavam e rebaixavam os seus subordinados. As mulheres eram assediadas: havia sempre um espertalhão convencido que lhes beliscava as nádegas já de si massacradas pela celulite. Os homens eram constantemente pressionados para serem bem-sucedidos, e nem umas curtas férias os libertava desse fardo. Os colegas vigiavam-se mutuamente com raiva, desforravam-se nos mais fracos, levando-os ao esgotamento nervoso ou a coisas ainda piores.
Se a pessoa bebia, começava a ter problemas no fígado e no pâncreas; se comia à vontade, o índice de colesterol aumentava; se fumasse, agarrava-se-lhe aos pulmões um cancro assassino - fizesse o que fizesse, o finlandês arranjava sempre maneira de culpar o vizinho. Alguns praticavam jogging dogmaticamente, até caírem exaustos no meio da pista coberta de cinza. Quem não corresse, ficava obeso, sofria das articulações e das costas e, no fim de contas, morria à mesma com uma paragem cardíaca.
Em conversa sobre todas estas coisas, os suicidas começavam a dizer-se que, bem vistas as coisas, até estavam em melhor situação que os seus compatriotas, obrigados a permanecer na sua sinistra pátria. Esta constatação encheu-os de felicidade pela primeira vez há muito tempo.
Mas todo o grupo tem o seu desmancha-prazeres. Seppo Sorjonen, o empregado de mesa a recibos verdes, começou a evocar as suas lembranças da Finlândia sem pedir licença a ninguém. O pior era que as suas recordações eram todas, sem excepção, positivas! Deu como exemplo a sauna. Sorjonen achava que só o facto de existir sauna pressupunha já que nenhum finlandês, quaisquer que fossem as circunstâncias, teria alguma vez o direito de se suicidar - pelo menos, não antes de um bom banho de vapor."

Arto Paasilinna, "Um Aprazível Suicídio em Grupo" 

quinta-feira, 28 de junho de 2012

"Há trinta e cinco anos que trabalho com papel velho e é essa a minha love story. Há trinta e cinco anos que prenso papel velho e livros, há trinta e cinco anos que me sujo de letras, de tal modo que me pareço com as enciclopédias de que durante esse tempo todo devo ter prensado pelo menos três toneladas: sou um cântaro cheio de água viva e água morta, basta inclinar-me um pouquinho e jorram de mim ideias lindas; sou culto independentemente da minha vontade e, assim, nem sei bem quais as ideias que são minhas, e saídas da minha cabeça, e que ideias li. Foi assim que, durante estes trinta e cinco anos, me liguei a mim próprio e ao mundo à minha volta; é que, quando estou a ler, afinal não leio, apenas colho com o bico uma bela frase e chupo-a como um rebuçado, como se bebericasse um cálice de licor durante muito tempo, até que a ideia se espalhe em mim como o álcool; ela dissolve-se em mim tão lentamente que penetra não só no meu cérebro e no coração mas pulsa também nas minhas artérias até às raízes dos capilares.

(...) todas as noites trago, na minha pasta, livros para casa, e o meu apartamento, num segundo andar em Holesovice, está repleto de livros, livros apenas: a cave está cheia e o alpendre já não chega, a cozinha, a despensa e a retrete estão cheias, apenas o caminho para a janela e para o fogão estão livres, na retrete há apenas o espaço para me poder sentar; por cima da sanita, à altura de um metro e meio já há traves e pranchas e em cima delas, até ao tecto, erguem-se os livros, quinhentos quilos de livros; chega um único movimento desajeitado ao sentar-me, um levantar imprudente, para tocar na trave mestra, e meia-tonelada de livros se precipitará sobre mim e me esmagará com as calças descidas. Mas como aqui já não se consegue acrescentar nem um só livro, assim, no quarto, em cima de duas camas juntas, mandei pôr traves e pranchas em forma de um baldaquim, de um dossel de cama, sobre as quais estão arrumados livros até ao tecto; trouxe duas toneladas de livros para casa durante trinta e cinco anos, e, quando estou a adormecer, duas toneladas de livros como uma falena de dois mil quilos pesam sobre os meus sonhos. Às vezes, quando me viro inadvertidamente ou grito e me agito ao dormir, ouço, horrorizado, como os livros escorregam; chega apenas um leve toque de joelho, talvez apenas um grito e como uma avalanche tudo se precipitará sobre mim, uma cornucópia cheia de livros preciosos cairá dos céus sobre mim e esmagar-me-á como um piolho."

Bohumil Hrabal, "Uma solidão demasiado ruidosa"

quarta-feira, 20 de junho de 2012

"Relacionadas com as nossas crenças ilusórias sobre a política e a democracia estão algumas noções respeitantes à política de voto. Encontra-se muito difundida na nossa sociedade uma crença (ou, pelo menos, um comportamento em conformidade com essa crença) segundo a qual, depois de vermos e ouvirmos um candidato na televisão, poderemos fazer previsões acerca da sua actuação se for eleito para o cargo. Pelo contrário, existe um considerável conjunto de provas fornecido pelas experiências sócio-psicológicas de que quando os seres humanos estão frente a outros seres humanos (particularmente quando os vêem a proferir palavras intencionalmente influenciadoras) são péssimos avaliadores do sentido dessas palavras e das suas implicações em termos de comportamento. Existem boas provas, por exemplo, de que, se a opinião do espectador for já favorável ao candidato, interpretará o discurso deste, qualquer que seja, de forma a coadunar-se com a sua própria posição em relação ao problema; enquanto que, se a opinião do espectador em relação ao candidato for desfavorável, interpretará o mesmo discurso em discordância com a sua posição."

Herbert Simon, "A razão nas coisas humanas"

terça-feira, 19 de junho de 2012

"- Entre um escritório aquecido e confortável e esta sala não há a mais pequena diferença - respondeu Andrei Efimich. - O repouso e a satisfação não estão fora do homem, mas dentro de si próprio.
- Que quer isso dizer?
- O homem vulgar espera o bom e o mau do exterior, quer dizer, do carro e do escritório, enquanto o homem que pensa espera-o de si próprio.
- Vá pregar essa filosofia para a Grécia, onde está calor e cheira a laranjas; o clima aqui não favorece.
- (...) Pode resistir-se ao frio como a qualquer outra dor. Marco Aurélio disse: «A dor é a exteriorização viva da dor: faz um esforço de vontade para mudar esta exteriorização, repele-a, deixa de te lamentar, e a dor desaparecerá.» Isto é exacto. O sábio ou simplesmente o homem que pensa, que medita, distingue-se precisamente pelo facto de que despreza o sofrimento. Está sempre satisfeito e nada o desgosta.
- Quer isso dizer que sou idiota, visto que sofro, estou descontente e desgosta-me a maldade humana.
- Não deve pensar assim. Se reflectir, compreenderá a significação de tudo o que é exterior, tudo o que nos inquieta. Há que tentar compreender a vida; nisso está o verdadeiro bem.
- Compreender a vida... - replicou Ivan Dmitrich, franzindo o sobrolho. - O exterior, o interior... Perdão, mas não o compreendo. A única coisa que sei - concordou, levantando-se e olhando irritado para o médico -, a única coisa que sei é que Deus me criou com sangue quente e nervos, como está a ouvir! O tecido orgânico, se é capaz de vida, deve reagir a qualquer excitação. E eu reajo! À dor respondo com gritos e lágrimas; à maldade com indignação; à vilania, com asco. Quanto a mim, isto é, na realidade, aquilo a que se chama vida. Quanto mais débil é o organismo, menos sensível se mostra e mais frouxamente resiste à excitação. E quanto mais elevado, tanto mais sensível e enérgica é a sua reacção à realidade. Como pode ignorá-lo? É você médico e não sabe umas coisas tão elementares! Para desprezar a dor, estar sempre satisfeito e não se preocupar com coisa alguma há que atingir esse estado - e Ivan Dmitrich apontou para o mujique obeso, transbordante de gordura -, ou então ter-se identificado com a dor até ao extremo de perder qualquer sensibilidade em relação a si próprio; ou seja, por outras palavras, deixar de existir.

- Admitamos que a tranquilidade e a satisfação estão dentro do próprio homem, e não fora dele - disse. - Admitamos que há que desprezar o sofrimento e não se admirar com coisa alguma. Mas em que se apoia você para o proclamar? Julga-se um sábio? Um filósofo?
- Não, não sou filósofo, mas isto qualquer pessoa o deve proclamar, porque é sensato.
- Não, o que pretendo saber é porque se considera competente no que respeita à compreensão do mundo, o desprezo pelo sofrimento e tudo o mais. Acaso não terá sofrido nunca? Tem alguma noção do que é o sofrimento? Diga-me: batiam-lhe quando era pequeno?
- Não, meus pais eram contrários aos castigos corporais.
- Pois, a mim, meu pai tocava-me a pavana. Era um funcionário público, de carácter violento, que sofria de hemorróidas, e tinha um grande nariz e pescoço amarelo. Mas falemos de si. Em toda a sua vida nunca ninguém lhe tocou nem com um dedo, ninguém o assustou nem lhe bateu; tem uma saúde de ferro, cresceu amparado por seu pai, que lhe pagou os estudos, e depois obteve imediatamente uma sinecura. Vive de graça há mais de vinte anos, numa casa com aquecimento e luz, tendo uma serviçal; deixam-no trabalhar como e quando quer; pode inclusivamente não fazer nada. É preguiçoso e frouxo por natureza, por isso tratou de organizar a sua vida de modo a que nada o inquietasse nem obrigasse a mexer-se. Abandonou tudo nas mãos do assistente e outros canalhas, enquanto o senhor ficava na sua casa aquecida e silenciosa, juntava dinheiro, lia livros, entregava-se a meditações sobre toda a espécie de sublimes coisas estúpidas e - aqui Ivan Dmitrich parou fitando o nariz vermelho do médico - bebia. Numa palavra, não sabe nada da vida, não a conhece em absoluto; da realidade tem apenas uma noção teórica. Se desdenha do sofrimento e nada o perturba, é por uma razão muito simples: vaidade das vaidades; o externo e o interno, o desprezo pela vida, pelos sofrimentos e pela morte, a compreensão do mundo, o verdadeiro bem: tudo isto é a filosofia mais apropriada ao vadio russo. (...) E o que é esse fantástico «autêntico bem»? Não existe resposta, claro. A nós têm-nos aqui entre grades, apodrecemos, martirizamo-nos, mas isso é belo e racional, porque entre esta enfermaria e um escritório aquecido e confortável não há nenhuma diferença. É uma filosofia muito cómoda; não há nada a fazer, a pessoa tem a consciência tranquila e considera-se sábio... Não, senhor, isso não é filosofia, não é pensamento, não é grandeza de ideias, mas preguiça, mentalidade de faquir, hipóteses... Sim! - voltou a irritar-se Ivan Dmitrich -, despreza o sofrimento, mas se lhe entalassem um dedo numa porta bradava aos céus!"

Anton Tchekov, "A Enfermaria n.º 6 e outros contos"

segunda-feira, 18 de junho de 2012

"Muitas das pessoas da nossa sociedade são menos susceptíveis do que a maioria aos caprichos que acabei de descrever; sofrem de uma aberração diferente. São aquelas cujos interesses políticos estão essencialmente confinados a um único problema, seja o aborto ou como evitá-lo, o controlo do armamento ou a liberdade de possuir armas de fogo, a religião nas escolas ou a liberdade de culto. Estas pessoas reagem a tudo o que possa acontecer na cena política, sobretudo no que respeita à maneira como esse acontecimento afecta o problema que as mobiliza. O seu voto nos candidatos a um cargo é determinado pela posição desses candidatos relativamente ao problema único que as obceca."

Herbert Simon, "A razão nas coisas humanas"

domingo, 17 de junho de 2012

"Enquanto caminhava, em direcção a casa, e meditando, a minha vaidade levou a melhor sobre a minha piedade. Não podia senão orgulhar-me da mestria com que me tinha desembaraçado de Bartleby. Magistralmente, como eu dizia, e assim o veria qualquer pensador desapaixonado. A beleza do meu modo de agir parecia consistir na sua perfeita tranquilidade. Não houvera qualquer vulgar disputa, nem bravatas, nem explosões de cólera, ou passadas largas de cá para lá no escritório, nem ordens violentamente proferidas com veemência, a fim de que Bartleby se pusesse lá fora, fazendo rapidamente uma trouxa com os seus miseráveis trapos. Nada disso. Sem me pôr a gritar para que Bartleby partisse - como alguém de carácter inferior poderia ter feito -, eu presumi que ele deveria partir; e baseado nessa suposição construí tudo o que eu tinha a dizer. Quanto mais pensava no meu procedimento, mais ele me encantava. No entanto, na manhã seguinte, ao acordar, tinha as minhas dúvidas - tinha de certo modo desvanecido pelo sono os fumos da vaidade. Uma das mais serenas e sábias horas que um homem tem é logo após acordar pela manhã. O meu procedimento parecia-me tão sagaz como anteriormente, mas somente em teoria. Como é que ele se mostraria na prática, aí é que estava o busílis. Era verdadeiramente um belo pensamento ter presumido a partida de Bartleby; mas, no fim de contas, essa suposição era somente minha, e não de Bartleby."

Herman Melville, "Bartleby"

sábado, 16 de junho de 2012

"Agora, suponhamos que uma mutação produz um gene altruísta que leva o indivíduo altruísta a empreender uma determinada actividade benéfica para todos os membros do seu grupo característico (mas não para os do deme), com algum sacrifício seu. Para um dado grupo característico, o resultado será o aumento da aptidão dos egoístas em relação à dos altruístas. No entanto, terão lugar algumas variações, de um grupo característico para outro, na proporção dos altruístas para os egoístas. A aptidão média será mais elevada nesses grupos onde existe um maior número de altruístas (desde que as implicações do seu comportamento altruísta encontrem recompensa justa no reconhecimento desse mesmo altruísmo por parte de número significativo de outros elementos do grupo). Os altruístas nestes grupos característicos favorecidos podem ter uma aptidão mais elevada que os egoístas em grupos com um maior número de egoístas. É fácil mostar rigorosamente que, se se verifica uma variação suficientemente grande na proporção de altruístas entre os diferentes grupos característicos, a aptidão média dos altruístas excederá a dos egoístas, implicando que o gene altruísta irá ocupar o lugar do egoísta nessa população.
Não é excessiva a variação requerida para produzir este resultado; de facto, se os altruístas se encontram distribuídos entre os diversos grupos característicos com uma variação tão grande como a da distribuição binominal, predominará o gene altruísta.
(...) O aparente paradoxo neste resultado pode dissipar-se se notarmos que, de um modo geral, os altruístas viverão em grupos característicos com uma proporção de altruístas mais elevada que a que está presente em grupos característicos habitados sobretudo por egoístas. Quer isto dizer que, em média, os altruístas estarão expostos a um meio mais favorável no seu grupo característico do que estarão os egoístas; por isso, os altruístas serão os melhores adaptados."

Herbert Simon, "A razão nas coisas humanas"

domingo, 10 de junho de 2012

"Ficou ali sentada e acabou de beber o chá e pensou nas coisas em que pensava, vestígios de memórias e  imagens fulgurantes e uma amiga de quem tinha saudades e todos os elementos salpicados de sombra que constituem um momento indivisível de uma manhã normal onde o absurdo irrompe de uma maneira tão humana e rotineira que nem sequer podemos fazer uma pausa e reparar no que está a acontecer, com excepção do Ajax que ela precisa de comprar e dos pássaros atrás dela, a rasparem no rebordo metálico do comedouro."

Don DeLillo, "O Corpo Enquanto Arte"

quarta-feira, 6 de junho de 2012

"- Que queres dizer com «meu devido lugar»? Ninguém sabe o seu devido lugar nesta vida e cada um de nós procura o seu próprio jugo. O lugar do comerciante Judas Petunikoff é nos trabalhos forçados, mas ele passeia-se pelas ruas em plena luz do dia e até quer construir uma fábrica. O lugar do nosso professor devia ser ao lado de uma mulher boa e de meia dúzia de filhos, mas ele está na taberna do Vaviloff. E tu mesmo vais procurar um lugar de lacaio ou de criado, mas eu vejo que o teu lugar é entre soldados, porque tu não és burro, és paciente e compreendes a disciplina. Estás a ver? A vida baralha-nos como se fôssemos cartas, e é apenas por acaso, e mesmo então, não por muito tempo, que acertamos no nosso lugar!"

Máximo Gorki, "Seres que outrora foram humanos"

terça-feira, 5 de junho de 2012

"Sermos nós próprios, unicamente nós próprios, é algo de extraordinário. Mas como chegar a isso, como alcançá-lo? Ah!, eis o truque mais difícil de todos. Difícil, precisamente porque não envolve qualquer esforço. Tentas não ser isto nem aquilo, nem grande nem pequeno, nem hábil nem desajeitado... estás a perceber? Fazes o que te vem à mão. De boa vontade, bien entendu. Porque nada há no mundo que não tenha a sua importância. Nada. Em vez de risos e aplausos recebes sorrisos. Pequenos sorrisos de satisfação - e é tudo. Mas é justamente o próprio tudo... mais do que alguém pode pedir. Fazendo o trabalhinho sujo, alivias as pessoas dos seus fardos. Isso torna-as felizes, mas a ti torna-te ainda mais feliz, compreendes? É claro que deves fazê-lo sem ostentação, por assim dizer. Nunca deves mostrar-lhes o prazer que te dá. Se te deixas apanhar, se te descobrem o segredo, estás perdido. Chamar-te-ão egoísta, faças por elas o que fizeres. Podes fazer tudo por elas - chegares mesmo a matar-te de trabalho - enquanto não suspeitarem que te estão a enriquecer dando-te uma alegria que nunca poderias dar a ti próprio..."

Henry Miller, "O sorriso ao pé das escadas"

terça-feira, 29 de maio de 2012

"Que é que dá vida às equações e forma ao universo por elas descrito? O propósito da ciência, quando se constrói um modelo matemático, não é responder à pergunta se existe um universo descrito pelo modelo. Porque se dá o universo ao trabalho de existir? A teoria unificada é tão imperativa que dá origem à sua própria existência? Ou precisa de um criador e, nesse caso, terá ele outro efeito sobre o universo? E quem o criou a ele? Até agora a maior parte dos cientistas têm estado demasiado ocupados com o desenvolvimento de novas teorias que descrevem o que é o universo para perguntarem porquê. Por outro lado, as pessoas que deviam perguntar porquê, os filósofos, não foram capazes de acompanhar o avanço das teorias científicas. No século XVIII, os filósofos consideravam todo o conhecimento humano, incluindo a ciência, como campo seu e discutiam questões como: terá o universo tido um princípio? No entanto, nos séculos XIX e XX a ciência tornou-se demasiado técnica e matemática para os filósofos ou para qualquer outra pessoa, com excepção de alguns especialistas. Os filósofos reduziram o objectivo das suas pesquisas de tal modo que Wittgenstein, o filósofo mais famoso deste século, afirmou: «A única tarefa que resta à filosofia é a análise da linguagem». Que queda para a grande tradição da filosofia desde Aristóteles até Kant!
Todavia, se descobrirmos uma teoria completa, deve acabar por ser compreensível, na generalidade, para toda a gente, e não apenas para alguns cientistas. Então poderemos todos, filósofos, cientistas e pessoas comuns, tomar parte na discussão do porquê da nossa existência e da do universo. Se descobrirmos a resposta, será o triunfo máximo da razão humana, porque nessa altura conheceremos o pensamento de Deus."

Stephen Hawking, "Breve História do Tempo"

segunda-feira, 28 de maio de 2012

"E quando Larbaud, por pura cortesia, se interessou pelo enredo do romance, recebeu esta resposta de Littbarski: «É a história de Hermann, um homem que desbarata a vida a odiar, de uma maneira gratuita, uma pessoa cujo único delito, se é que houve, consistiu em esvaziar, quando criança, uma garrafa de champanhe. Hermann entrega-se de corpo e alma à tarefa de amargurar a vida do inimigo, chegando mesmo a permanecer solteiro para assim não perder um único minuto do seu tempo em nada que não seja a perseguição implacável do esbanjador de champanhe francês. De vez em quando, Hermann efectua certeiros disparos sobre a vida do outro, quer dizer, felizes intromissões no universo do seu inimigo (rouba-lhe a mulher, denuncia os seus negócios, esquarteja-lhe a mãe, mata o cão, queima-lhe a casa, etc), breves mas certeiras rajadas disparadas pelo solteiro em lugares onde o pobre homem odiado não o pode ver: um pobre homem odiado que atravessa o romance da sua vida perplexo e assustado ao constatar que nem sequer o peso dos anos atenua o ódio à sua pessoa por parte de alguém que desconhece e de quem apenas sabe que, manobrando fora da sua vista e do seu alcance, se dedica, com especial obstinação e notável êxito, a amargurar-lhe a vida.»"

Enrique Vila-Matas, "História Abreviada da Literatura Portátil"

domingo, 27 de maio de 2012

"A ideia de que o espaço e o tempo podem formar uma superfície fechada finita e ilimitada tem também profundas implicações no papel de Deus na criação. Com o êxito das teorias científicas na descrição dos fenómenos, a maioria das pessoas acabou por acreditar que Deus permite que o universo evolua segundo um conjunto de leis e não intervém nele para quebrar essas leis. Contudo, as leis não nos dizem qual era o aspecto do universo primitivo. O acto de dar corda ao relógio e escolher como pô-lo a trabalhar continuaria a ser com Deus. Desde que o universo tenha tido um princípio, podemos supor que teve um criador. Mas, se o universo for na realidade completamente independente, sem qualquer fronteira ou limite, não terá princípio nem fim: existirá apenas. Qual seria então o papel do criador?"

Stephen Hawking, "Breve História do Tempo"

sábado, 26 de maio de 2012

"Também sabemos doutra superstição daquele tempo: a do Homem do Livro. Nalguma estante de algum hexágono (pensaram os homens) deve existir um livro que seja a chave e o resumo perfeito de todos os outros: deve haver algum bibliotecário que o tenha estudado e seja análogo a um deus. Na linguagem desta zona hão-de persistir ainda vestígios do culto desse funcionário remoto. Fizeram-se muitas peregrinações à procura d'Ele. Durante um século percorreram em vão os mais diversos rumos. Como localizar o venerado hexágono secreto que o alojava? Alguém propôs um método regressivo: Para localizar o livro A, consultar previamente um livro B que indique o sítio de A; para localizar o livro B, consultar previamente um livro C, e assim por diante até ao infinito... Foi em aventuras destas que desperdicei e consumi os meus anos de vida. Não acho inverosímil que naquela estante do universo haja um livro total; rogo aos deuses ignorados que um homem - um só que seja, há milhares de anos! - o tenha examinado e lido. Se não forem para mim a honra e a sabedoria e a felicidade, que sejam para outros. Que o céu exista, mesmo que o meu lugar seja o inferno. Que eu seja ultrajado e aniquilado, mas que num instante, num ser, a Tua enorme Biblioteca se justifique."

Jorge Luis Borges, "Ficções"

quinta-feira, 24 de maio de 2012

"Portanto, se acreditarmos que o universo não é arbitrário, mas sim governado por leis definidas, teremos, finalmente, de combinar as teorias parciais numa teoria unificada completa que descreva todo o universo. Mas existe um paradoxo fundamental na busca dessa teoria. As ideias sobre as teorias científicas que foram aqui delineadas presumem que somos seres racionais livres para observar o universo como quisermos e tirarmos conclusões lógicas daquilo que observamos. Num esquema como este é razoável supor que seremos capazes de progredir cada vez mais em direcção às leis que governam o universo. Contudo, se houver realmente uma teoria unificada, ela também determinará presumivelmente as nossas acções. E, assim, a própria teoria determinaria o resultado da nossa busca. E por que motivo determinaria que chegássemos às conclusões certas a partir da evidência? Não poderia também determinar que chegássemos à conclusão errada? Ou a nenhuma conclusão?"

Stephen Hawking, "Breve História do Tempo"

quarta-feira, 23 de maio de 2012

"Foi o meu primeiro instinto: protegê-lo. Nunca me ocorreu que houvesse uma maior necessidade de me proteger a mim próprio. A inocência pede sempre silenciosamente protecção, quando seria muito mais sensato precavermo-nos contra ela: a inocência é como um leproso mudo que perdeu o guizo e vagueia pelo mundo sem más intenções"

Graham Greene, "O Americano Tranquilo"


(Sugerido por João Q.)

segunda-feira, 14 de maio de 2012

"«... Havia uma lua grande no meio do mundo. Os meus olhos perdiam-se, a olhar para ti. Os raios da lua filtravam-se sobre a tua cara. Não me cansava de ver essa aparição que tu eras. Suave, esfregada pela lua; a tua boca macia, húmida, irisada de estrelas; o teu corpo cada vez mais transparente na água da noite. Susana, Susana San Juan.»
Quis levantar a mão para ver mais nitidamente aquela imagem, mas as suas pernas retiveram-na como se esta fosse de pedra. Quis levantar a outra mão e foi caindo devagar, de lado, até ficar apoiada no chão como uma muleta que sustentava o seu ombro desossado.
«Eis a minha morte», disse.
O sol partiu, girando sobre as coisas e devolvendo-lhes a sua forma. A terra em ruínas estava diante dele, vazia. O calor aquecia o seu corpo. Os seus olhos quase não se mexiam; saltavam de memória em memória, desfigurando o presente. De repente, o seu coração detinha-se e parecia que também o tempo e o sopro da vida se detinham.
«Desde que não seja uma nova noite», pensava ele.
Porque tinha medo das noites que enchiam a escuridão de fantasmas. De ficar fechado com os seus fantasmas. Era disso que tinha medo."

Juan Rulfo, "Pedro Páramo"

domingo, 13 de maio de 2012

"Era preciso prevenir as pessoas destas coisas. Ensinar-lhes que a imortalidade é mortal, que ela pode morrer, que já aconteceu, que ainda acontece. Que não se anuncia enquanto tal, nunca, que é a duplicidade absoluta. Que não existe no pormenor, mas apenas no princípio. Que certas pessoas podem dela transportar a presença na condição de ignorarem que o fazem. Tal como certas outras pessoas podem detectar-lhe a presença nessas pessoas, na mesma condição, ignorarem que o podem fazer. Que é enquanto ela se vive que a vida é imortal, enquanto está em vida. Que a imortalidade não é uma questão de mais ou menos tempo, que não é uma questão de imortalidade, que é questão de outra coisa que permanece ignorada. Que é tão falso dizer que ela não tem começo nem fim, como dizer que começa e acaba com a vida do espírito uma vez que é do espírito que ela participa e da perseguição do vento. Olhai as areias mortas dos desertos, o corpo morto das crianças: a imortalidade não passa por aí, pára e contorna."

Marguerite Duras, "O Amante"

domingo, 6 de maio de 2012

"a verdade nua e crua já é em si um exagero"

Joseph Roth, "Fuga sem fim"

quinta-feira, 3 de maio de 2012

"Em contrapartida também eu rendi homenagem ao deus do Amor, cujo templo se ergue numa ilha de praias louras e em arco, na areia dourada acariciada pelo mar. E a imagem do deus não é ídolo nem qualquer coisa de visível, mas um som, o puro som da água marinha que entra no templo através dum canal cavado na rocha e que se despedaça numa concha secreta; e ali, devido à forma das paredes e à ampliação da construção, o som reproduz-se num eco infinito que arrebata quem o ouve e causa uma espécie de embriaguez ou de tontura. E a muitos e estranhos efeitos se expõe quem honra este deus, porque o seu princípio comanda a vida, mas é um princípio bizarro e caprichoso; e se é verdade que ele é a alma e a concórdia dos elementos, também pode produzir ilusões, delírios e visões. E eu assisti nesta ilha a espectáculos que me perturbaram pela sua verdade inocente: tanto que tive dúvidas se tais coisas existiam deveras ou se eram antes fantasmas do meu sentimento que saíam de mim e tomavam aparência real no ar porque me tinha exposto ao som enfeitiçado deste deus; e pensando isto, tomei por um caminho que leva ao ponto mais alto da ilha, donde se pode ver o mar de todos os lados. E então apercebi-me de que a ilha era deserta, que não havia nenhum templo na praia e que as figuras e os vários rostos do amor que eu tinha visto como quadros vivos e que compreendem múltiplas gradações do espírito como a amizade, a gratidão, orgulho e a vaidade, todos estes rostos que eu pensava ter visto em formas humanas, eram apenas miragens provocadas por mim, quem sabe por qual sortilégio. E assim cheguei mesmo ao cimo do promontório e enquanto, observando o mar infinito, já me estava a abandonar ao mal-estar que o desengano provoca, uma nuvem azul desceu sobre mim e arrebatou-me para um sonho: e sonhei que te escrevia esta carta, e que eu não era o grego que partiu em busca do Ocidente e mais não voltou, mas que estava apenas a sonhá-lo"

Antonio Tabucchi, "Mulher de Porto Pim"

sábado, 14 de abril de 2012

"Desejosos de brilhar diante do boss silencioso, aqueles senhores deleitavam-se e improvisaram com vivacidade, evocando na estranha linguagem do Secretariado «as situações a explorar», «a aprovação geral a procurar sobre a partilha das responsabilidades tanto organizacionais como operacionais», «os diversos modos de abordar o problema», «as realizações das instituições especializadas», «as facilidades a obter dos governos apelando ao seu espírito cooperativo», «as experiências passadas que apoiam largamente a urgente necessidade de uma acção concreta», «as evidências a fornecer sobre a utilidade do programa encarado», «as dificuldades praticamente inexistentes», «os encorajantes discursos recentemente apresentados no conselho». E assim por diante, tudo entremeado de propostas confusas e contraditórias, conscienciosamente anotadas pela estenógrafa que não compreendia nada porque era inteligente."

Albert Cohen, "Bela do Senhor"

domingo, 8 de abril de 2012

"Logo no dia seguinte mandei o meu manuscrito a Atlas. Posso ser singularmente rápido em certas circunstâncias. Depois esperei. Passo a minha vida à espera dos outros. Tudo o que pedem neste mundo, executo-o o mais depressa possível, segundo creio, e muito conscienciosamente; concluo um texto de acordo com o deliberado e prometido, mesmo que tenha de passar noites em branco. Mas estou sempre à espera dos outros. Já aos quinze anos, ainda fedelho, era sempre o primeiro a chegar ao cemitério, o ponto de reunião para as nossas rapinas, e esperava pelo resto do bando. Os outros só servem para me refrear na vida, bloquear a minha energia, matar-me, enfim. Uma visão que, como podem ver, coincide com o olhar de Gatsby sobre outrem; o amo e o servidor têm o mesmo temperamento de uma cana que a gente ao redor faz tudo para refrear. É bem certo que Gatsby se sai mais airosamente que eu. Voa de Concorde ou no seu avião privado. Tem a ilusão da velocidade, do movimento e da energia. Eu cá, permaneço nesta insensata espera. Os meses passam, seguem-se os anos, e beber este insípido xarope quotidiano, sobreviver a esta triste rotina, em tal consiste o heroísmo. Muito mais difícil do que fazer uma surtida debaixo das balas, o género de proeza que, se me dão licença que contradiga a opinião corrente, não exige senão um efémero esforço de vontade. Tenho a certeza de que poderia conservar as mãos nos bolsos e o charuto no bico, e o sorriso nos lábios, frente ao pelotão de execução. Estou pronto! Mas este ramerrão de merda mata-me, às vezes sinto que não falta muito para estourar, fazer disparates."

"O que é interessante nos trabalhos físicos é que eles permitem que nos abandonemos ao curso dos nossos pensamentos."

Edward Limonov, "história de um poeta mordomo"

quinta-feira, 29 de março de 2012


"e a lei, essa coisa sensível que gosta de nós e se preocupa com o estarmos felizes e confortáveis, comove-me. põe-se à espreita dos gestos todos e salta-nos em cima com entusiasmo se lhe parece que nos arrogamos mais espaço que o esperado, ou se simplesmente queremos tomar uma decisão sozinhos, tragando o que é nosso, sem ter de dar conta aos outros do que é nosso, do que toda a vida foi nosso e, agora, é sempre por percentagem do estado também. haviam todas as coisas ser de comer. tudo. carros e casas haviam de ser de comer. e no momento em que estivéssemos para morrer e deixar para impostos e taxas e roubalheiras assim, comíamos tudo e depositávamos no testamento o monte de merda que, se quisessem vê-lo transformado novamente em casas e carros, teriam de usar para estrumar os campos e depois plantar e regar e tomar conta e depois colher até venderem laranjas das boas como antigamente se fazia no país inteiro." 

 A Máquina de Fazer Espanhóis, Valter Hugo Mãe

quarta-feira, 21 de março de 2012

"Ao contrário, se uma jovem for muito bonita, se tiver uma beleza que ultrapasse em muito a habitual e sedutora frescura das adolescentes, então produz um efeito sobrenatural e parece invariavelmente transportar consigo um destino trágico. Com quinze anos, Annabelle fazia parte dessas raparigas à passagem de quem todos os homens, sem distinção de idade ou estado, ficam parados; dessas raparigas cuja simples passagem numa rua movimentada de uma cidade de tamanho médio faz acelerar o ritmo cardíaco dos rapazes e dos homens maduros e arranca suspiros de mágoa aos velhos. Ela deu-se rapidamente conta do rasto de silêncio que ficava na sua passagem, ao entrar num café ou na sala de aulas, mas foram precisos anos para compreender perfeitamente qual era a causa. No colégio de Crécy-en-Brie, era tácito que ela «andava com» o Michel, mas mesmo que não o soubessem, nenhum rapaz teria tido atrevimento para se meter com ela. Este é um dos principais inconvenientes de ser extremamente bela: só os engatatões inveterados, cínicos e sem escrúpulos é que sentem capazes do esforço de aproximação. São, em regra, os homens mais crápulas quem se apodera do tesouro que constituem essas virgindades, o que só pode constituir para elas o primeiro degrau de uma queda irremediável."

Michel Houellebecq, "As partículas elementares" 

terça-feira, 20 de março de 2012

"Acordo, mas não abro logo os olhos, a demorar a surpresa, o encanto, a dizer-me que não é miragem, é verdade, é dela o corpo encostado ao meu. Macio, jovem, firme.
Corro os dedos pela seda do seu cabelo e devagarinho, procurando, desenho-lhe com eles a fronte, as sobrancelhas, a face, toco-lhe o pescoço, faço-os parar na curva do ombro. Espalmo-os no começo do seio, sentindo-lhe o pulsar.
Relembro a noite e tão intensa é a minha felicidade que, a saboreá-la e para melhor me encher dela, primeiro finjo que não acredito, digo-me que foi sonho.
Espreito. Continua a dormir. Não resisto à tentação do vício antigo e, guloso da sua beleza, levanto a roupa, fico-me a admirá-la num arroubo que soma os desejos da vida inteira. Mas cubro-a ao ver que treme num arrepio e passo o braço sob o seu pescoço, dou-lhe o meu calor.
Com uma ternura que nunca antes conheci beijo-lhe ao de leve os cabelos e a fronte, a face. Saciado de corpo e alma, afagado pela memória da noite, prendo a sua mão na minha e volto a adormecer."

J. Rentes de Carvalho, "A Amante Holandesa"

segunda-feira, 19 de março de 2012

"Toda a gente saberia o que se passara comigo, como é óbvio. A doutora Nolan dissera-me, sem quaisquer cerimónias, que algumas pessoas falariam comigo mantendo uma certa distância, ou evitar-me-iam, como se eu fosse uma leprosa com o seu sino. O rosto da minha mãe vinha-me à ideia flutuando como uma lua pálida e acusadora, durante a sua última visita à clínica após o aniversário dos meus vinte anos. Uma filha numa clínica para doentes mentais! O que eu lhe fizera! Apesar de tudo, ela decidira perdoar-me.
«Reiniciaremos tudo do ponto em que partiste, Esther», dissera, com um sorriso doce, de mártir. «Procederemos como se tudo tivesse sido apenas um sonho mau».
Um sonho mau.
Para a pessoa dentro da campânula, vazia e imóvel como um bebé morto, o próprio mundo não passa de um sonho mau.
Um sonho mau.
Lembrava-me de tudo.
Lembrava-me dos cadáveres, de Doreen, da história da figueira, do diamante de Marco, do marinheiro, da enfermeira de olhar austero, do doutor Gordon, dos termómetros partidos, do negro com os dois tipos de feijões, dos quilos que aumentara por causa da insulina, do rochedo pairando entre o céu e o mar como uma caveira cinzenta.
Talvez o esquecimento, como se fosse uma espécie de neve, viesse e os cobrisse.
Mas eles faziam parte de mim. Eram a minha paisagem."

Sylvia Plath, "A campânula de vidro"

sábado, 17 de março de 2012

"Na ponta de cada ramo, qual figo viçoso e suculento, acenava um futuro maravilhoso que me piscava também o olho. Um figo era um marido, um lar feliz e crianças, outro um famoso poeta, outro um professor brilhante, outro Ee Gee, o brilhante redactor, outro a Europa, a África e a América do Sul, outro Constantin e Sócrates e Átila e mais uma série de namorados com nomes esquisitos e profissões estranhas, outro uma campeã olímpica, e todos estes figos estavam ainda rodeados por outros que não consegui identificar.
Vi-me a mim própria sentada à beira da figueira cheia de fome porque não conseguia escolher entre tantos figos. Queria-os a todos, mas escolher um significava perder os outros. Assim, enquanto permanecia sem saber o que fazer, os figos murchavam e caíam, um após outro, a meus pés."

Sylvia Plath, "A campânula de vidro"

quinta-feira, 15 de março de 2012

"Mesmo que se engane, o desenvolvimento natural da sua vida interior conduzi-lo-á lentamente, com o tempo, a um outro estado de conhecimento. Deixe que os seus juízos tenham a sua evolução natural, silenciosa. Não contrarie esta evolução que, com todo o aperfeiçoamento, deve vir do mais profundo do seu ser e não pode suportar coacções nem pressas. «Levar a termo e dar à luz» - eis tudo. É preciso deixar cada impressão, cada gérmen de sentimento amadurecer em si, no obscuro, no inexprimível, no inconsciente - essas regiões fechadas ao entendimento. Espere com humildade e paciência a alvorada de uma nova claridade. Aos simples fiéis a Arte exige tanto como aos criadores.
O tempo, neste caso, não é uma medida. Um ano não conta, dez anos não são nada. Ser artista é não contar, é crescer como a árvore que não apressa a sua seiva, que resiste, sem temer que o Verão possa não vir. O Verão vem. Mas só vem para aqueles que sabem esperar, tão calmos como se tivessem na frente a eternidade. Aprendo-o todos os dias à custa de sofrimentos que bendigo: a paciência é tudo."

Rainer Maria Rilke, "Cartas a um jovem poeta"

domingo, 11 de março de 2012

" Senti a sua testa deslizar pelo meu ombro num sinal de denegação.
- Isaías ainda não nasceu, David. Basta-me vê-lo e ouvi-lo para saber que me é impossível amá-lo e muito menos deitar-me na sua cama.
Eu já não conseguia proferir uma palavra e mal conseguia respirar. As palavras de Eva abatiam-se sobre o meu coração como granizo. Tinha de me conter para não a abraçar, apertar contra mim e beijar-lhe os lábios, gritando que tinha razão. Que o seu pai e Jacob tinham pecado, que eu tinha pecado com eles e até, à minha maneira, mais do que eles.
Forcei-me, pelo contrário, a pensar no caos que se precipitava na nossa direcção como a pedra de uma fisga. Obriguei-me a mentir a mim próprio. A acreditar que não havia outra saída senão essa promessa.
Porém, Eva era feita de intransigência e de juventude. Nem uma parcela da sua alma se deixaria corromper pela mentira.
- Tudo o que não posso fazer com Isaías fá-lo-ia contigo, chorando de alegria, David. Tu sabes. Cheguei a sonhar que terias coragem para isso. Mas sei bem que não.
- Eva, não deves...
Tapou-me a boca com os dedos.
- Sei tudo o que podes dizer. Sei tudo o que pensas. E não te quero mal por isso. É assim. não te peço mais nada a não ser que não deixes de me amar. E quando eles se atirarem contra mim, deves continuar a amar-me.
Não tive tempo para protestar. Os seus lábios substituíram os seus dedos. Um beijo que, num abrir e fechar de olhos, me fez acreditar que o universo era ainda mais vasto do que concluira aquando das minhas viagens.
Depois Eva desapareceu na noite. As rãs deixaram bruscamente de cantar. Tantos séculos depois, ainda ouço cada um dos seus passos. Durante um momento, foi estranho. Parecia que ela ia desaparecer por entre o brilho das estrelas e que eu devia correr atrás dela."

Marek Halter, "O Cabalista de Praga"

terça-feira, 6 de março de 2012

"Existem, para qualquer ser humano, palavras que lhe são mais íntimas e queridas do que todas as outras. E então, muitas vezes, encontramos inesperadamente num recanto perdido, no deserto dos desertos, uma pessoa que nos fala ao coração, que nos faz esquecer o caminho inclemente e as pousadas inóspitas, e nos faz esquecer o desvirtuado barulho moderno, e as mentiras desavergonhadas que nos lançam na confusão. E para sempre se grava na nossa memória uma conversa assim, nocturna, e a nossa fiel memória tudo guardará: quem estava presente, onde estava sentado, o que tinha nas mãos, as paredes, os cantos, a mais pequena bugiganga."

Nikolai Gógol, "Almas Mortas"


(Tive vontade de transcrever, para aqui, o livro todo mas depois pensei que talvez não fosse uma boa ideia)

domingo, 4 de março de 2012

"Daisy há-de ter ficado aquém do sonho - não por culpa dela, mas devido à colossal vitalidade da própria ilusão. Tudo a tinha ultrapassado, ultrapassado tudo. O Gatsby precipitara-se todo inteiro naquele sonho, com toda a sua paixão criadora, acrescentando-o hora a hora, ornando-o de todas as plumas e pedrarias de cor que de caminho lhe surgiam. Não há fogo nem refrigério, por grandes que sejam, que possam aceitar o repto de todos os fantasmas ocultos no coração do homem."

"O Gatsby acreditara na luz verde, no orgíaco futuro que, ano após ano, foge e recua diante nós. Se hoje nos iludiu, pouco importa: amanhã correremos mais depressa, alongaremos mais os braços... Até que uma bela manhã...
Assim vamos teimando, proas contra a corrente, incessantemente cortando as águas, a caminho do passado que não volta."

F. Scott Fitzgerald, "O Grande Gatsby"

domingo, 26 de fevereiro de 2012

"À despedida, o progenitor não verteu lágrimas, abriu mão de cinquenta copeques em cobres para as despesas e guloseimas e, muito mais importante, de uns sábios preceitos: «Vê lá, Pavlucha, se estudas, se não fazes asneiras, se não és mandrião; sobretudo, usa de lisonja para com professores e superiores. Se agradares aos superiores, mesmo que não faças progressos nos estudos e mesmo que Deus te não tenha dado grandes talentos, andarás para a frente e ultrapassarás os outros todos. Não faças amizade com os colegas, eles não têm nada de bom para te ensinar; mesmo assim, caso faças alguma amizade, que seja com os mais ricos, para te ajudarem se for preciso. Não presenteies ninguém, faz antes com que os outros te presenteiem e, em primeiro lugar, poupa o teu copeque: é essa a coisa mais segura no mundo. O colega ou o amigo vão aldrabar-te e serão os primeiros a trair-te na desgraça, mas já o copeque te será sempre fiel em todos os contratempos. Valendo-te do copeque, tudo farás.»"
Nikolai Gógol, "Almas Mortas"

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

"Desde o primeiro sopro que assim é: a palavra é o tempo de vida dos humanos.
É evidente que nós, mulheres, homens, crianças ou velhos, somos palavras de carne, movimentos de carne, vidas e emoções de carne. E o tempo que passa nessas carnes foge e consome-as na sua dissipação. Reduz a mais sublime das matérias, a pele sedosa e a tez rósea, a esse nada de pó que um sopro infantil consegue dispersar.
O Verbo, porém, é imortal. Não sucumbiu a nenhum furor, nenhuma massa o destruiu; nenhuma fogueira, nem mesmo as mais dementes de séculos ricos em massacres, o consumiu. Surgiu com o espírito do ser humano, não com a sua carne. E nunca, nunca desde o primeiro dia, se calou.
Nada se cria fora do Verbo, tudo sucumbe na sua presença. São fracos os que o ignoram; são grandes os que sabem inclinar-se perante esse poder. Humanos, simples humanos, acreditamos que só a carne gera carne. Que cegueira, que ignorância! A respiração, os batimentos do coração repleto de sangue são igualmente fruto das palavras que o Eterno colocou na nossa boca."
Marek Halter, "O Cabalista de Praga"

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

"Não sei ao certo, agora, se devo ou não acreditar na predestinação, mas pelo menos nessa tarde acreditava profundamente; e eu, esquecendo que fizera pouco dos nossos antepassados e da sua complacente astrologia, deslizei involuntariamente no seu trilho; mas retive-me a tempo nessa via perigosa; tendo por regra nada rejeitar de forma decisiva e não acreditar em nada cegamente, deixei de lado a metafísica e comecei a olhar para debaixo dos meus pés."

Lermontov, "Um herói do nosso tempo"

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

"Escrevo-te com a plena certeza de que não nos tornaremos a ver. Há alguns anos atrás, quando me separei de ti, pensei a mesma coisa; mas o Céu achou bem tentar-me uma segunda vez: não pude, porém, resistir a mais esta prova, e o meu coração frágil submeteu-se de novo a essa voz tão bem conhecida... Não vais desprezar-me, não é verdade? Esta carta servirá, pois, de adeus e de confissão; sinto-me obrigada a dizer-te tudo o que se acumulou no meu coração desde que te amo. Não te acusarei, procedeste comigo como qualquer outro homem teria procedido. Amaste-me como propriedade tua, como uma fonte de prazeres, de alarmes e de desgostos que se alternavam constantemente e sem os quais a vida teria sido enfastiadora e monótona... Compreendi isso desde o princípio... Mas tu sentias-te infeliz, e sacrifiquei-me, esperando que um dia viesses a apreciar esse sacrifício, que um dia, enfim, viesses a compreender a minha profunda ternura, que não depende de nenhuma condição. Muito tempo decorreu desde então; penetrei todos os segredos da tua alma... e convenci-me de que a minha esperança era vã. Foi amargo para mim! Porém o meu amor, que forma um todo com a minha alma, obscureceu-se, mas não se apagou.
Deixamo-nos para sempre; entretanto, podes estar persuadido de que jamais amarei outro homem: a minha alma esgotou contigo todos os seus tesouros, as suas lágrimas e as suas esperanças. Quem te amou uma vez não pode olhar os outros homens sem desprezo, não porque sejas melhor que os outros, oh!, não!, mas na tua natureza há qualquer coisa de particular, que só te pertence a ti, qualquer coisa de orgulho e de mistério; na tua voz, aquilo que dizes tem uma potência invencível; ninguém sabe querer ser amado com tanta constância; em mais ninguém o mal é tão atraente; ninguém tem um olhar que prometa tanta felicidade; ninguém sabe melhor aproveitar das suas vantagens e ninguém pode ser verdadeiramente tão infeliz como tu, porque ninguém se esforça tanto por se convencer do contrário."

Lermontov, "Um herói do nosso tempo"