sexta-feira, 30 de setembro de 2011

"Ainda que tivessem soado as trombetas, que fossem entoados cânticos de guerra, ou que do norte chegassem mensagens inquietantes, se fosse apenas isso, Drogo não teria desistido de partir; mas já se apoderara dele o torpor da habituação, a vaidade militar, o amor doméstico pelas muralhas quotidianas. (...) Todas estas coisas se tinham já tornado suas e deixá-las ter-lhe-ia causado desgosto. Drogo, todavia, não o sabia, não suspeitava que a partida lhe teria sido penosa nem que a vida da Fortaleza devorava os dias um após outro, todos semelhantes, a uma velocidade vertiginosa. Ontem e anteontem eram iguais, ele já não seria capaz de os distinguir; um facto ocorrido há três ou há vinte dias acabava por lhe parecer igualmente longínquo. Assim se desenrolava, sem ele se aperceber, a fuga do tempo."

Dino Buzzati, "O Deserto dos Tártaros"

domingo, 11 de setembro de 2011

"Dentre os convidados sobressaíam alguns com características pessoais reconhecidos como heróis da festa. Não faltavam ali as invejas e as intrigas, nem as costumadas pequenas calúnias, sem as quais a Humanidade não pode viver e milhares de indivíduos morreriam de aborrecimento, dada a pequenez da sua imaginação, tal como as moscas sucumbem no Outono."

Dostoievski, "O Pequeno Herói"

sábado, 3 de setembro de 2011

"O machismo português é o machismo, não da força masculina, mas da fraqueza. Não consiste no homem armar-se em agressor, mas em vítima. O logro é este: o homem apresenta-se sempre à mulher como vítima da natureza «de homem», dele. Ser homem, para o machista português, é ser essencialmente fraco. É um não-ser-capaz de resistir às tentações; um envergonhado "já sabes como é, filha» que serve para legitimar todos os privilégios de que goza (aos quais chama «deslizes»). À mulher não se admitem estes abusos - os copos, as entradas às tantas da manhã, os romances - porque o homem português considera a mulher um ser superior. Como é superior - mais forte, mais séria, mais responsável, mais ajuizada - não tem, muito simplesmente, direito a nada."


Miguel Esteves Cardoso, "A Causa das Coisas"

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

"Desengane-se de vez a rapaziada. Nenhuma mulher gosta de um homem «experiente». O número de amantes anteriores é uma coisa que faz um bocadinho de nojo e um bocadinho de ciúme. O pudor que se exige às mulheres não é um conceito ultrapassado - é uma excelente ideia. Só que também se devia aplicar aos homens. O pudor valoriza. O sexo é uma coisa trivial. É por isso que temos de torná-lo especial. Ir para a cama com toda a gente é pouco higiénico e dispersa as energias. Os seres castos, que se reprimem e se guardam, tornam-se tigres quando se libertam. E só se libertam quando vale a pena. A castidade é que é «sexy». Nos homens como nas mulheres. A promiscuidade tira a vontade."


Miguel Esteves Cardoso, "As minhas aventuras na República Portuguesa"