terça-feira, 31 de maio de 2011

"De mãos dadas, aproximámo-nos todos do proscénio para nos curvarmos numa vénia e quando me inclinei, ele levantou-se e falou-me ao ouvido, num tom insistente.
Vai ter comigo lá fora, por favor.
Olhei à volta, precipitadamente, ainda meio à espera de ver outra mulher - uma mulher mais bonita, mais merecedora - dar um passo em frente para escutar a mensagem dele. Mas ele estava a olhar para mim com uma expressão séria nos olhos brilhantes. E quando o fixei, quase me ia esquecendo da mão quente e nervosa do actor ao meu lado, vi-o assentir com a cabeça como que em resposta a uma muda interrogação.
Eu?
Sim, tu."

Joanne Harris, "Danças & Contradanças"

domingo, 29 de maio de 2011

"Ela riu-se. Dei-lhe um beijinho, apalpando-lhe o cu. Então, voltei para a sala com a minha bebida, sentei-me, estiquei as pernas, suspirei.
Podia ficar aqui, pensei, fazia dinheiro nas corridas e ela tomava conta de mim nos momentos maus, espalhava óleos no meu corpo, cozinhava para mim, falava comigo, ia para a cama comigo. Havíamos de ter discussões, como é óbvio. É essa a natureza da Mulher. Elas gostam do intercâmbio de roupa suja, um bocadinho de gritaria, um bocadinho de drama. Depois, uma troca de juras. Eu não era muito bom na troca de juras.
Estava a ficar entusiasmado. Na minha imaginação, eu já me tinha mudado para ali."

Charles Bukowski, "Correios"

sábado, 28 de maio de 2011

"O mais engraçado, no meio disto tudo, é que eu estava a pensar noutra coisa enquanto lhe dava música. Vivo em Nova Iorque, e estava a pensar na lagoa no Central Park, perto de Central Park South. Perguntava a mim mesmo se estaria gelada quando eu voltasse para casa, e, se estivesse, para onde é que iam os patos. Perguntava a mim mesmo para onde vão os patos quando a lagoa fica toda gelada, com uma camada de gelo por cima. Perguntava-me se haveria algum tipo que vinha com um camião e os levava para um zoo ou coisa assim. Ou se simplesmente voavam para qualquer sítio."

J. D. Salinger, "À Espera no Centeio"

sexta-feira, 27 de maio de 2011

"Os festejos são assunto táctil,
a alegria só é sonora para o exterior,
mas nada é feliz com a cabeça de fora.
O júbilo sai sem um único som acompanhando.
O som é o elemento falso das coisas.
Falar, cantar, fazer barulho disforme,
tudo faz parte de um anexo do corpo,
pois tu és um organismo interior, caro Bloom,
bem como todos os humanos. Sentir não tem som,
isso é mais que evidente."

Gonçalo M. Tavares, "Uma Viagem à Índia"

quinta-feira, 26 de maio de 2011

"E depois, com ou sem casamento, embora o casamento sempre apresse as coisas, aquele que foi um Rodolfo, e se tornou num Léon, transforma-se em Bovary. Engorda. Limpa os dentes com a língua. Faz barulho quando engole a sopa. É desajeitado e ignorante. É grosseiro e até de costas é irritante. Ao princípio, isto enerva-te simplesmente; no fim, põe-te doida. O príncipe que te salvou da tua aborrecida existência é agora o porco no âmago da aborrecida existência. Chato, chato, chato. E depois a catástrofe. De uma maneira ou de outra, seja qual for o seu trabalho, ele faz asneiras colossais no emprego. Como o pobre do Carlos com Hipólito. Parte para o equivalente a extrair um calo a alguém e provoca-lhe gangrena. O homem que foi perfeito é um falhanço desprezível. Eras capaz de matá-lo. A realidade triunfou sobre o sonho."

Philip Roth, "Traições"

quarta-feira, 25 de maio de 2011

"O que aconteceu na história é que ela está semeada de desastres, e quando se estuda história vai-se de desastre em desastre e fica-se ansioso pelo seguinte, e tem-se passos para o abismo, e há datas e conceitos, e aprendem-se, e depois passa-se o exame. O sarilho da vida é que não se sabe na verdade se isto é um processo descendente. O sarilho com a vida é que não se sabe de todo o que de facto se passa."

Philip Roth, "Traições"

quarta-feira, 18 de maio de 2011

"Sim, é verdade que o comércio meteu a Natureza
em caixas com um preço. Mas tal não é terrível nem
sequer desagradável. Bem pior são certas crianças
que arrancam uma das patas a um sapo que teve o azar
de servir de objecto aos exercícios ingénuos de seres vivos
com seis anos. Entre ser vendida inteira
por comerciantes careiros ou ser fragmentada por crianças
que não sabem o valor do dinheiro, a Natureza
optará sempre pelo pacífico capitalismo.

Porque o capitalismo sabe que uma mercadoria
sem uma das patas vale menos:
por isso não arranca patas ou orelhas,
ou cabeças inteiras à dentada. Mas se valesse mais até
arrancavam
uma das patas da Torre Eiffel - exclamou Jean M.
Não te iludas com monumentos nem com cerimónias.
A estética terminou. Ficou o dinheiro.
Os homens são génios do bem para o ouro,
génios do mal para a paisagem."


Gonçalo M. Tavares, "Uma Viagem à Índia"

terça-feira, 17 de maio de 2011

"Os sofrimentos
não são todos da mesma espécie animal:
de uns, sais aperfeiçoado - pensa Bloom -,
de outros, canino e obediente."

"só existe idade madura no corpo que
atravessou uma doença ou a compreendeu."


Gonçalo M. Tavares, "Uma Viagem à Índia"

segunda-feira, 16 de maio de 2011

"(...) tenha suficiente amor-próprio para não conceder o amor da totalidade do coração, da alma e da força, quando uma tal dádiva não é desejada e até seria desdenhada."

Charlotte Brontë, "Jane Eyre"

domingo, 15 de maio de 2011

"Hoje, quando rememoro essas cenas, apetece-me rir dela e de mim. É bom sinal. Como se, ao longo destes anos, tivesse aprendido alguma coisa do emaranhado das nossas pulsões, dos nossos pequenos e grandes gestos, dos rasgos dramáticos, até patéticos, que mais tarde deploramos. Que se nos afiguram alheios ao nosso verdadeiro ser, a essa entidade movediça, sempre em transformação que é o nosso ser. Para lá dos gritos do instinto, tudo, creio bem, mesmo o amor, tudo é comédia."


Urbano Tavares Rodrigues, "O Eterno Efémero"

sábado, 14 de maio de 2011

"Falar (ou mesmo escrever) entretém,
pode convencer, seduzir - mas jamais resolve."

"As palavras, por exemplo, não são práticas nem úteis,
enrolam-se nos dedos, interferem nos factos.
Quando muito explicam - mas tal não é solução."


Gonçalo M. Tavares, "Uma Viagem à Índia"

quarta-feira, 11 de maio de 2011

"O sentimento sem nenhum discernimento é, certamente, como uma corrente de ar que depressa passa, mas o discernimento que não é temperado com sentimento é um alimento demasiado amargo e grosseiro para a deglutição humana."

Charlotte Brontë, "Jane Eyre"

terça-feira, 10 de maio de 2011

"Está com frio, porque está sozinha: não tem nenhum contacto que acenda o fogo que tem dentro de si . Está doente, porque os melhores sentimentos, os mais elevados e doces dados ao ser humano, se mantêm afastados de si. É estúpida porque, por mais que sofra, é incapaz de fazer um sinal para que esses sentimentos se aproximem de si, nem daria um passo para os encontrar onde eles estão à sua espera."

Charlotte Brontë, "Jane Eyre"

domingo, 1 de maio de 2011

"Nenhum homem é imortal - declarou em voz baixa. - Todos devemos a morte a Deus"

"Aves de Rapina", Wilbur Smith