sábado, 30 de abril de 2011

"Uma garrafa de vinho por dia, dois versos;
uma investida erecta no bordel principal da cidade,
mais verso, verso e meio, no regresso a casa,
sair (depois) à janela
para insultar os burgueses que passam,
eis como se diverte um poeta."


Gonçalo M. Tavares, "Uma Viagem à Índia"

sexta-feira, 29 de abril de 2011

"Perdoar é compreender."

José Eduardo Agualusa, "Barroco Tropical"

quinta-feira, 28 de abril de 2011

"Entre ameaças que fazia e recebia,
algumas - devido ao mau funcionamento dos transportes
da época -
chegavam com dias de atraso
- facto que muitas vezes tornava
as ameaças desactualizadas.
Afinal já não lhe queriam arrancar a pele,
mas sim um ou dois órgãos internos; coisas assim.

Porém, apesar do sistema de fracas comunicações,
o ódio desenvolveu-se. Se até no tempo dos Romanos
havia exércitos inteiros que não simpatizavam entre si,
quanto mais em tempos recentes.
É que o ódio não necessita de grande tecnologia de suporte:
bastam duas mulheres para um único homem, ou dois
homens para um único território."


Gonçalo M. Tavares, "Uma Viagem à Índia"

quarta-feira, 27 de abril de 2011

"E eis o que é evidente: há mais inimigos
em tempo de paz do que em tempo de guerra.
Em tempo de paz cada exército
tem uma dimensão familiar, por exemplo,
sete elementos (no caso de um casal
com cinco filhos) e o resto são inimigos.
São as minhas contas;
que posso fazer? - há muito perdi a ingenuidade."


Gonçalo M.Tavares, "Uma Viagem à Índia"


terça-feira, 26 de abril de 2011

"Achei que podia fugir do amor. Enganei-me. O amor é um cão velho e tinhoso, porém obstinado, que nunca desiste. Abandonamo-lo no mato, para morrer de fome e de sede, para morrer de frio, porque queremos que morra, e dias depois ele está de regresso a casa, a abanar a cauda. Enxotamo-lo à pedrada, mas volta sempre."

José Eduardo Agualusa, "Barroco Tropical"

sexta-feira, 22 de abril de 2011

"Uma noite de lua pálida e gerânios
ele virá com a boca e mão incríveis
tocar flauta no jardim.
Estou no começo do meu desespero
e só vejo dois caminhos:
ou viro doida ou santa.
Eu que rejeito e exprobro
o que não for natural como sangue e veias
descubro que estou chorando todo o dia,
os cabelos entristecidos,
a pele assaltada de indecisão.
Quando ele vier, porque é certo que vem,
de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?
A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
- só a mulher entre as coisas envelhece.
De que modo vou abrir a janela, se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?"


Adélia Prado

quinta-feira, 21 de abril de 2011

"Sou mulher, sou Marta e só posso escrever. Afinal, talvez seja oportuna a tua ausência. Porque eu, de outro modo, nunca te poderia alcançar. Deixei de ter posse da minha própria voz. Se viesses agora, Marcelo, eu ficaria sem fala. A minha voz emigrou para um corpo que já foi meu. E quando me escuto nem eu mesma me reconheço. Em assuntos de amor só posso escrever. Não é de agora, sempre foi assim, mesmo quando estavas presente.
E escrevo como as aves redigem o seu voo: sem papel, sem caligrafia, apenas com luz e saudade. Palavras que, sendo minhas, não moraram nunca em mim. Escrevo sem ter nada que dizer. Porque não sei o que te dizer do que fomos. E nada tenho para te dizer do que seremos. Porque sou como os habitantes de Jesusalém. Não tenho saudade, não tenho memória: meu ventre nunca gerou vida, meu sangue não se abriu em outro corpo. É assim que envelheço: evaporada em mim, véu esquecido num banco de igreja."


Mia Couto, "Jesusalém"

quarta-feira, 20 de abril de 2011

"Aos poucos, Dordalma se enclausurou num mundo só dela, triste e calada como a bravia pedra."

"Quem perde a esperança foge. Quem perde confiança esconde-se."


Mia Couto, "Jesusalém"

terça-feira, 19 de abril de 2011

"O que a memória ama, fica eterno.
Te amo com a memória, imperecível"


"Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.

Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes."


Adélia Prado